Manual pessimista para viver a vida segundo Akira Kurosawa

Manual pessimista para viver a vida segundo Akira Kurosawa

Akira Kurosawa construiu um monumento ao realizar “Os Sete Samurais”. Sua grande obra cinematográfica, uma das maiores do cinema universal, é atual, belíssima, contundente e verdadeira. Kurosawa mergulhou de cabeça, com seu olho clínico e sua voz penetrante, na psicologia de seus personagens e os transformou em seres verossímeis, longe dos abstratos samurais, que são colossos intocáveis, de outro cinema popular. O que o diretor disse, nos distantes idos dos anos de 1950, pode ser aplicado para a vida de qualquer pessoa, em qualquer tempo e lugar. Em outras palavras, Kurosawa criou um manual de comportamento para a batalha que resiste às constantes mudanças no espaço-tempo.

Akira Kurosawa
Akira Kurosawa: criou um mundo

O diretor japonês, que revelou ao mundo a força esmagadora do cinema de seu país após apresentar para o ocidente o seu “Rashomon” (inspirado no clássico livro “Rashomon e outros contos”, de Ryûnosuke Akutagawa), em 1950, seu décimo segundo filme, era um visionário e também um amante de sua cultura. Mesmo sendo o mais ocidental dos cineastas japoneses, Kurosawa, que credita a Ozu o cinema essencialmente tradicional, disse certa vez, “eu nunca faria um filme para um público estrangeiro; se o filme não tiver sentido para o público japonês, eu — como artista japonês — simplesmente não estou interessado nele”. Descendente de samurais, Kurosawa apreciava o teatro Nô, mas também admirava diretores como John Ford e D. W. Griffith e os escritores F. Dostoiévski e William Shakespeare. Sobre o cinema nipônico André Bazin afirmou “a revelação do cinema japonês é seguramente o acontecimento cinematográfico mais considerável desde o neo-realismo italiano”. Tendo como Kurosawa um de seus mais importantes representantes. Sem dúvida, o diretor foi um influenciador de inúmeras gerações de grandes cineastas. Segundo o diretor George Lucas, “por meio da força de seu estilo gráfico e de sua dedicação perfeccionista a cada elemento de seus filmes, o senhor Kurosawa consegue compartilhar seus sonhos épicos e visões tanto quanto sua calorosa e profunda compreensão das existências individuais. Ele coreografa imagens e sons para expressar significados que palavras somente não conseguem. A vitalidade e a inventividade do senhor Kurosawa continuam a ser uma inspiração para mim e para todos que estudam o cinema”.

Os Sete Samurais
Os Sete Samurais: Akira Kurosawa construiu um monumento do cinema universal

Em seu universo dostoieviskiano, concebeu personagens essenciais. Como exercício de simular a humanidade em seus aspectos mais sutis, “Os Sete Samurais” é um glossário para o entendimento do comportamento humano. As oscilações propositais em suas personagens, que trafegam do simples e ingênuo ao terrível e desumano, é um exemplo de seu domínio magistral sobre o tema. Um homem com entendimento de Akira Kurosawa, devia acreditar na redenção pela guerra. A batalha essencial, entre passado e futuro, memória e comportamento. Aí se encontra a raiz da metáfora física sobre o confronto com as características mais primitivas do homem.

“Os Sete Samurais” é um épico. Sobretudo pelas suas personagens. O roteiro é de uma simplicidade assustadora. Nisso reside sua força e sua beleza. Segundo o próprio Kurosawa, “um filme bom de verdade deve oferecer uma boa diversão. Não há nada de complicado nisso. Um filme realmente bom é interessante e fácil de entender”. Com o fato percursor apresentado, “durante as guerras civis um ciclo interminável de conflitos deixou o interior à mercê de bandidos. Os habitantes viviam amedrontados pelo estrondo dos cavalos…”, já no início, somos invadidos pelo som do ataque dos bandidos, às margens da aldeia, que se instala ameaçador e incita nos habitantes o medo da tomada de seus bens e da violência contra seus corpos. Tudo isso sugere uma medida radical em meio ao desespero. A ideia do morador sênior da aldeia é simples, “contratar samurais”. Para o dramaturgo Hisashi Inoue, “antes de mais nada, o roteiro é maravilho. Parece que foi inspirado por uma força sobrenatural”. Assim começa uma saga memorável. Para reforçar a sua importância, “Os Sete Samurais” influenciou o vigoro western “Sete Homens e um Destino” que, segundo André Bazin, possui um “roteiro que realiza a proeza de nos surpreender continuamente a partir da trama rigorosamente clássica”. Uma concepção que emergiu da essência crua e fascinante de seu motivador.

Kambei Shimada (Takashi Shimura), que é um líder calculista, com profunda capacidade de causar empatia, identificado com as desventuras de seus iguais, os indefesos lavradores, organiza a defesa da aldeia citada com rígida competência e amplo significado. É um elo com o altruísmo embutido em alguma camada mais interna e remota do ser humano. O mentor da aventura é acompanhado pelo jovem Katsushiro, que se torna seu aprendiz. Um garoto que almeja tornar-se um Samurai e escolhe com entusiasmo e convicção Shimada para ofertar-lhe as lições que precisa. Nota-se que deixou uma vida abastada, por uma vida de aventuras e batalhas, quando ele se desfaz de uma porção de moedas para ofertá-las aos lavradores.

Os Sete Samurais
Em seu universo dostoieviskiano, Kurosawa concebeu personagens essenciais para o entendimento do comportamento humano

Kikuchiyo (Toshiro Mifune), o guerreiro sem nome — um arremedo de Samurai, já que não é suficientemente disciplinado — é ao mesmo tempo o alívio cômico e a fortaleza que conecta os mundos tão distintos dos guerreiros ancestrais e dos lavradores. Kikuchiyo representa o caos. Sua espada é desproporcionalmente maior que as de seus companheiros e sua vontade está amparada no absurdo e quase incompreensível desejo de matar. Sabemos depois que o elo só funciona porque Kikuchiyo também foi vítima da crueldade humana. O Samurai releva, em uma cena cativante e inesquecível, “aconteceu o mesmo comigo. Eu era como este bebê”. Filho de lavradores, conheceu muito cedo a dor e a ruína. Sua sensibilidade bruta ao proferir seu discurso irretocável sobre a transformação do homem do campo num misto de ser humano rancoroso e ensimesmado, é um dos grandes momentos do cinema japonês. Mifune demonstra habilmente o talento que o elevou a categoria de grande astro de seu tempo.

Noutro extremo, toda a mansidão da destruição, que surge como bruma redentora, está concentrada na presença de Kyuzo (Seiji Miyaguchi), o espadachim por excelência. O colosso representa uma potência de ordem, segurança e matemática. Kyuzo parece querer fazer juz a máxima de Sun Tzu, “a suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem lutar”. A morte de Kyuzo possui uma das fotografias mais belas de todo o cinema existente. Este Samurai é responsável por uma lição invisível, uma das mais importantes do filme. A lição não verbalizada. Na cena do duelo entre os espadachins, os lutadores empatam quando não usam armas letais. Noutro momento, Kyzuo reluta em continuar a disputa, mas seu oponente saca a espada e o desafia a lutar novamente. Munido de sua afiada katana e de sua frieza característica, o Samurai, vence facilmente seu adversário, que perde a vida. A batalha real em nada se assemelha a um treino!

O grupo torna-se coeso dramaticamente com a participação um antigo e um recém conquistado amigo, o braço direito de Shimada, Shichiroji, e Gorobei, realizado pelo excelente Yoshio Inaba. E um cortador de lenha bem-humorado, chamado Heinachi.  O grupo formado é uma fascinante trupe de homens determinados, no melhor estilo das histórias de aventura, diferentes entre si e repletos de intensidade e carisma.

O trio de lavradores, Manzo, Mosuke e Yohei, representam essencialmente a crença na terra. Os samurais passam, os lavradores ficam. A essência do culto à natureza imutável do ser humano se fortalece na perspectiva de que os três lavradores errantes são os mais apegados às suas funções. Querem defender o seu patrimônio a qualquer custo. São devotos ao seu lugar de origem. E por isso enfrentam o impossível. Transformam-se em guerreiros ao longo do filme, mas apenas para poderem, convictamente, retornarem à terra para cultivá-la.

 Os Sete Samurais
Kurosawa construiu um épico com um roteiro de uma simplicidade assustadora. Nisso reside sua força e sua beleza

O velho, oráculo da vila de lavradores, belíssima imagem do crepúsculo da vida, é um oásis de racionalidade e de equilíbrio no meio da subjetividade, da fraqueza e do medo.

Não são raros os momentos em que Kurosawa nivela os seus samurais aos humildes lavradores, oferecendo em sua narrativa uma identidade universal para a dor, para a solidão, para a incapacidade de alguns obterem uma elevação altruísta. Os lavradores oferecem porções de arroz em troca de uma porção individual de dignidade, conquistada pelo confronto, pela capacidade de dizer claramente que não estão dormentes, que podem agir. Em contrapartida, os samurais recebem redenção que, alguns, curiosamente, nem sabiam que precisavam. A preparação para a guerra é uma jornada de autoconhecimento.

Akira Kurosawa concentra seu filme nas desventuras dos lavradores e dos guerreiros. Existe uma sombra de pessimismo pairando sobre as personagens. O mundo é um lugar de letalidade e toda guerra custa um preço muito alto. Os homens pautam suas vidas por máximas conclusivas que determinam seus caminhos. O vetor direcionador das ações pode ser encontrado nas falas das personagens. Suas verdades são apresentadas aberta e sinceramente. O início da saga é marcado pela afirmação de Kambei Shimada de que foi derrotado em todas as batalhas que enfrentou. Mesmo vencendo, os sobreviventes percebem que não é possível ganhar completamente. A derrota existe porque na guerra também morrem os melhores. O aprendiz de Shimada torna-se homem quando percebe que a vida também é uma soma de perdas, quando é recusado pela camponesa pela qual se apaixonou. É seu rito de passagem. Finamente, a última lição é a de que o Samurai, cuja elemento fundamental de sua conduta é a ação, não possui vitórias. Guardada às devidas proporções e situações, a frase de Kambei Shimada é uma verdade destroçadora e atemporal, “e, mais uma vez, fomos derrotados. Os vencedores foram os lavradores; não nós”.

Do filme, podemos usurpar sabiamente 22 frases essenciais para a conduta. São elas:

O caminho do Samurai, assim como o dos homens simples e amedrontados, pela ameaça da desgraça iminente, é orientado por um conjunto de ditos imediatos e contundentes. Seguir esse pequeno manual de conduta não transformará ninguém em um Samurai moderno. Pelo menos intimamente — talvez fosse um dos desejos subentendidos do mestre Akira Kurosawa, em sua magnífica obra — pode promover um novo olhar, mais sensível e altruísta, mais aguçado e solidário, sobre o mundo e as pessoas. Cultuar esse monumento cinematográfico é transformar a potência da disciplina de suas personagens, suas vontades, os seus melhores aspectos, em algo vivo e perene.

Solemar Oliveira

Doutor em Física, professor universitário e pesquisador com trabalhos publicados em periódicos acadêmicos nacionais e internacionais. Também atua como prosador, poeta, crítico e ensaísta. Autor dos romances “Desconstruindo Sofia” e “A Confraria dos Homens Invisíveis”, além do livro de contos “A Breve Segunda Vida de uma Ideia”, destacado entre os melhores de 2022. Seu livro “As Casas do Sul e do Norte”, publicado pela editora da Revista Bula, recebeu o prêmio Hugo de Carvalho Ramos, uma das mais tradicionais láureas literárias do Brasil.