Enquanto o mundo berra que vidas negras importam, o fim da história do pequeno Miguel Silva, 5 anos, denuncia que muitos brasileiros pensam o contrário. Disfarçados de bons empregadores, milhares de brancos ricos mantém a relação da Casa Grande e Senzala nos costumes de suas famílias ‘de bem’. Ocupados em não deixar o Brasil ‘parar’, delegam suas rotinas domésticas e parte da criação da prole às mulheres pobres e predominantemente afrodescendentes. Essas, aceitam lugares de menos-valia para sobreviver. Existem, na prática, como peças da engenhoca desigual e desumana do capitalismo contemporâneo. Muito similar à escravidão. Exagero?
Tente se colocar no lugar da cearense Mirtes Renata, mãe de Miguel. Reforçarei os maus tratos óbvios porque ‘pensar perturba’ como disse Martin Luther King. Ainda mais sob a ótica do discurso do absurdo daqueles que governam atualmente o país. Cenário de pandemia de Coronavírus. Apenas serviços essenciais devem funcionar. Porém, a empregada doméstica Mirtes precisa trabalhar. Ela ‘poderia’ ficar em casa. A tal liberdade custaria o salário que não seria pago. Não tem com quem deixar o filho, Miguel Silva, de 5 anos. Com a autorização da patroa Sari Corte Real e do patrão e prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker, a mulher pobre e negra sai, diariamente, da segurança do isolamento social com uma criança. Pega dois ônibus lotados, espremida e em pé para dedicar seu dia ao conforto dos outros. Não usa máscara dentro de casa dos patrões. Precisa ter contato com entregadores que não param de chegar. Passeia na rua com o cachorro.
Sem o direito à proteção, Mirtes pega o novo Covid-19 do patrão. Passa para o filho e para a mãe idosa. Enquanto o os familiares abastados se recuperam na casa de campo — também mantida limpa por outros empregados — Mirtes segue na labuta se arriscando pelo pão. Todos sobrevivem. Ela lava, passa, cozinha e passeia com o pet, porque ‘bicho também é gente’. Final feliz?
Em um dia desses, Mirtes prefere não levar Miguel para a rua. Ele fica no apartamento com a patroa Corte Real enquanto a empregada cuida do animal, aparentemente sem nenhuma estimação. Daí, a criança quer atenção. O máximo que consegue é ser desovado, sozinho, em um elevador pela mulher do prefeito. Miguel é pequeno, se perde e cai do nono andar. Morre horas depois no hospital. Acidente?
No dia seguinte, Sari Corte Real, também mãe e supostamente qualificada para avaliar riscos com crianças, é autuada pela Polícia Civil por homicídio culposo, sem intenção de matar. Sua identidade é preservada sob argumento de não desrespeitar a lei de abuso de autoridade. Abuso de quem?
Sigo com perguntas para dar nome aos bois: a mãe Sari não conseguiria supor que é arriscado deixar criança de 5 anos sozinhas em elevadores? A Corte Real não conhece os riscos do prédio onde mora? A esposa do prefeito, deixaria a filha ou alguma amiguinha rica dela sair por aí sem supervisão? A suspeita Sari Corte Real, esposa do prefeito de Tamandaré Sérgio Racker, teria a identidade preservada se fosse pobre e preta?
Tantas interrogações: A morte de Miguel não seria assassinato que sugere intenção de matar? Corte Real sabia dos riscos e mesmo assim expos Mirtes e Miguel a eles. Não sei se por preguiça de encarar afazeres domésticos, por considerar a necessidade de cachorro maior que a de gente ou por não se importar com a segurança do filho da empregada ou qualquer outra coisa. O que isso pode significar? Um agravante?
Papel da polícia investigar. O meu, pensar. Não cabe dúvida é que a irresponsabilidade de Sari Corte Real resultou na morte de Miguel Silva, uma criança de 5 anos. Outra trágica história que envolve a morte de crianças pretas e pobres. Deixo claro que acho improvável que Sari tenha desejado a morte de Miguel. Até acredito que esteja sofrendo. Mas o contexto possivelmente preconceituoso faz da negligência dela ainda mais grave e acende uma alerta social porque a prática pode ser mais comum do que parece. Por isso, esse caso precisa de esclarecimentos isentos para haja alguma justiça. Possível?
Como mãe, cidadã, jornalista e, especialmente, defensora da equidade social me pergunto cada vez mais e mais. Por que a escandalosa prática de negligenciar as vidas dos negros ainda vigora? Por que ainda há omissão e injustiça em suas mortes? O que as vidas de Miguel, João Pedro, George e milhões de outras significam? Até quando o silêncio será cúmplice?
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