A natureza sabe das coisas. Cada uma das estações carrega em si uma compreensão infinita das fases da própria vida, que se espelha também nos estágios da nossa existência. Nascer, crescer, amadurecer e morrer. Se quisermos pinçar metáforas no leque das comparações, poderemos sugerir verbos afinados. Brotar, florescer, frutificar e fenecer. Nem sempre, porém, compreendemos os sussurros contidos nestes ensinamentos cercados de verde, mutações frequentes e da eterna presença da esperança.
Nem sempre entendemos a premência e até mesmo urgência dos cortes que acontecem no decorrer da nossa história pessoal, antecipando, por meio de aparentes perdas, transformações plenas de sentido.
Cortes imprevistos, abruptos, que nos ceifam a alegria e os sonhos pela raiz. Amputações de projetos, a despeito das nossas vontades. Doenças repentinas e implacáveis. Extirpações de relacionamentos que sugeriam trocas, aparentemente férteis. Pretensos amigos, sob a pele de víboras. Outros, cujo caráter se revelou tortuoso e indefinido como o comportamento dos sagazes camaleões.
Cecília Meireles, autora da frase-título desta crônica, poeta de encharcada sensibilidade e senso de observação cristalino, enxergava a si e ao mundo com os olhos do coração. Sentia, apreendia, absorvia os discursos de todo o gênero que a rodeavam, visuais, olfativos, sensoriais, muito além dos sons das corriqueiras falas humanas.
Talvez bem cedo a poeta tivesse compreendido a necessidade de aceitar cortes essenciais na intimidade do seu cotidiano. Quem sabe observava plantas e flores sendo ceifadas, passando por enxertos e renascendo transformadas.
A propósito, como é para você conseguir voltar sempre inteira após se deparar com perdas, às vezes enormes, que aterrissam em sua vida a seco e sem licença nem aviso prévio. Tudo já começa cedo. A perda dos dentinhos, na infância, do seio da mãe, a perda do berço e do engatinhar pelo crescimento iminente.
A perda gradual da inocência. Os limites frustrantes, preenchidos de negativas por seus pais, nos primeiros anos de sua ainda verde história. Não pode. Tira a mão daí. Não mexe nisso. Para de tirar meleca na frente de visitas. Para de chorar e escova os dentes agora. Sai do computador. Hora de dormir e não tem conversa.
São cortes, muitos cortes, reproduzidos a torto e a direito e trazendo susto e asfixia. Alguém precisa amputar uma perna gangrenada para não morrer. Um tumor para sobreviver. Um casamento para prosseguir sonhando. Cortar o choro e engolir a mágoa diante do chefe descerebrado para não perder o emprego.
Adjetivos, advérbios, interjeições, discursos longos e vazios, falas demagógicas como a dos políticos. O palavrão fora de hora. O xingamento mal encaixado, o revide com um soco não adequado à ocasião. A empolgação excessiva e descabida.
Até que ponto a gente é capaz de flagrar nossos exageros. Olhar para dentro de nós, onde moram verdades escancaradas e certezas sem escamoteamentos. Detectar, nas nossas performances diárias, gafes, atitudes desproporcionadas, necessidades irrefreáveis de chamar atenção.
Conter os ímpetos e cortar a demanda aparentemente incontrolável de surrupiar brindes nos hotéis, restaurantes, despejar na bolsa bandejas de salgadinhos servidos na festa de fim de ano na empresa. Que delícia fugir às regras e jogar no lixo todas as proibições da forjada e fajuta ética, hein.
Não mandar á merda a sogra, as cunhadas e todo o pacote de agregados na família do marido para não o perder. Recomenda-se prudência em alguns casos. Mas quanto esforço nos custa refrear estes impulsos, antes que eles cheguem enfurecidos à garganta. Difícil.
Apresenta-se neste momento a compulsão, sempre de mãos dadas com a ansiedade. Beber até cair. Transar com todos sem distinção, incluindo o bêbado da esquina. Comer sem parar o bolo de chocolate previsto para durar três dias na geladeira. Falar demais sem escutar os interlocutores. Quem nunca? Rir e chorar histericamente, enquanto sufoca sorrateiramente mágoas cinzentas, profundas e danosas. Cortar gente vampira, conselhos de meia tigela, pessoas invejosas, interesseiras, loucas para puxar o seu tapete e aplaudir de camarote quando você cair de bunda na amargura.
Aprender a lidar com sentimentos áridos como paciência, resignação, tolerância, abnegação, compaixão. Buscar força e determinação, aonde quer que elas estejam talvez em regiões de emoções sombrias. Aventurar-se a qualquer preço para se manter de pé em meio a desgraças. As hecatombes e intempéries do mundo somadas às suas.
Alguns hábitos também desfilam livremente em sua vida. Preguiça, adiamentos, mentiras, fofocas, maledicências, faltar a deveres e compromissos. Já venceu alguma dessas batalhas ou acha que está tudo certo e deve continuar desse jeito?
Situações graves: como cortar das depressões e tristezas o desejo de desistir da vida? Colocar para fora o que angustia tanto, antes de meter uma bala na cabeça. Porque dor não assumida além de seguir, eventualmente, por uma trilha suicida, se continuar ignorada pode virar câncer. Um pesadelo insidioso que depois de instalado não para de se alastrar.
Entretanto, no meio de tantos cortes, a natureza se reaproxima da gente, agora mais de mansinho, e alerta para algumas regenerações possíveis, como as observadas em certos milagres. Nossos neurônios, por exemplo, se multiplicam sem parar mesmo na idade adulta. Nos mamíferos, o fígado é o órgão com maior capacidade de reconstrução. Quando cortado ao meio, as células das duas metades começam logo a se proliferar.
Bichinhos como lagartixa e minhoca se reconstituem naturalmente. No fundo dos mares flagramos belos e fascinantes segredos. As esponjas de coloridas e exóticas formas, demostram incrível capacidade de regeneração. Algo tão impressionante que, mesmo se trituradas num liquidificador, conseguem renascer. As estrelas do mar e ouriços desafiam perdas semelhantes e também se reconstituem.
Mas é hora de retornar às histórias nossas de cada dia. Então, dá para cortar fora os ciúmes e as desconfianças absurdas que minam raras e preciosas relações. A arrogância e o orgulho desmedidos. Fulminar a soberba com legítimos e corajosos pedidos de desculpas. Trocar o ódio e os rancores, gradualmente que seja pelo perdão. Enterrar o desamor, a baixa estima, culpas irracionais a favor do florescimento da felicidade.
Enquanto você reflete sobre as questões acima, deixamos aqui uma reconfortante certeza. Todos passarão ainda pelo aprendizado de novas primaveras. Recomeços e finais de ciclos para abraçar estações inteiras de delicadas e merecidas plenitudes. Convém aproveitar essa notícia.