Era apenas mais um dia de quarentena para quem não tem escolha sobre sua própria liberdade em isolamento social. Mirtes Renata, em seu curto movimento diário de ganha-pão, saía da periferia carregando o seu pequeno rebento, Miguel da Silva, em direção a uma realidade que não era a deles, em um bairro de prédio luxuosos. Uma jornada que passou de normal à trágica com tons absurdos de crueldade, em uma catástrofe social rotineira que apagou a vida do garoto de nome angelical — exatamente na semana em que o mundo grita que vidas negras importam. Não são apenas símbolos.
No meio de milhares de perdas diárias que o país vem passando com a pandemia, uma em especial é exata em alertar o quanto falhamos como seres humanos. O garoto Miguel, na inocente primeira etapa da vida, acompanhava a mãe no trabalho para não mais voltar. Enquanto ela passeava com os cachorros da patroa, o menino, ansioso, chorou para tentar ir atrás de sua genitora. A patroa, munida de uma atitude de absurda impaciência, não apenas foi negligente com os cuidados ao deixá-lo sozinho no elevador, como apertou o botão do nono andar do elevador. O resto é inenarrável.
Ninguém jamais saberá a dor que essa mãe sentiu com o acontecimento. A revolta tem tons de tragédia anunciada por ser mais um garoto negro, da favela, envolvido em uma sórdida relação derivada da escravidão moderna com eufemismos trabalhistas. E se fosse a empregada a deixar o filho da patroa morrer, estaria ela solta?
O jovem negro, em geral, parece ter a vida menos valiosa de todas. No caso de Miguel, uma fiança de 20 mil reais quantifica e elucida quão torpe era a sua existência para justiça e sociedade. Fiança paga, patroa liberada. A sensação de impotência e o embrulho no estômago são consequências naturais de quem se coloca no lugar da mãe que perdeu o filho. Protestos estão marcados, condolências estão sendo prestadas, mas nada retornará com a vida do pobre menino pobre. Sua mãe cuidou bem dos cachorros da patroa. A patroa destruiu a vida de ambos.
Ao cabo de uma pesada semana para quem tem empatia pelo próximo, o discurso que mata ainda ganha holofotes e joga a última pá de cal em qualquer resquício de compaixão. É que uma blogueira, do auge de sua casa-grande, palestrou que o racismo é normal, instintivo e justificável. A dura mostra da sociedade doente expondo o determinismo que atinge uma casta da população. É que a justiça, no Brasil, é assimétrica para pretos, excluídos e marginalizados. Infelizmente, o jovem com nome de anjo não conseguiu utilizar suas asas no injusto destino que lhe deram. Um mundo de futuros interrompidos e crueldades renováveis. É que Floyd, João Pedro e Miguel cometeram o crime de nascer etiquetados pela cor.
E quem caiu do nono andar, na verdade, foi a nossa própria sociedade.