70% da população vai encher o rabo de cloroquina. Não tem jeito. É assim mesmo. E daí? Minha falecida avó detesta quando eu digo isso, mas, a verdade é que todo mundo vai morrer um dia. Brasileiro não pega nada. Brasileiro precisa ser estudado depois que sair do esgoto, se sobreviver a essa gripezinha que assola a economia do planeta. Fugi da escola. A merenda não merecia ser comida. Certo dia, para desopilar um pouco, cismei de praticar tiro ao alvo contra uma goiabeira. Meter bala em árvore é comigo mesmo. E bicho de goiaba, goiaba é. Acabei matando Jesus, que estava escondido na copa. Maldito comunista, acima de tudo. “Por favor, meu filho, ajuda-me”, ele implorou. Eu respondi que também era messias, só que não fazia milagres, infelizmente. “Quem mandou matar Marielle?”, balbuciou suas últimas palavras imerso numa enorme poça de vinho tinto. “Tomai-o todos e o enterrai, pois, não sou coveiro.” Ordenei que milicianos patriotas pegassem uma retroescavadeira e ocultassem o santo cadáver, antes que ele ressuscitasse ao terceiro dia. Não se pode confiar em gente que caminha sobre a água. Por falar em água, montei numa moto aquática, gentilmente cedida por correligionários da extrema-direita, e fui dar um rolê na lagoa, para espairecer. Já tinha morrido gente demais de raiva e de arrependimento, e isso estava me deixando feliz à beça. Eu detestava transparecer contentamento. O sol e a liberdade em raios fúlgidos punham-se no horizonte. Com a graça de Deus, dias de terra arrasada estavam por vir. Comentei com o rapagão espadaúdo, que tinha um passado de atleta e que se abarcava à minha cintura: “Atenção, soldado. Olhando de longe, sob os derradeiros raios crepusculares, as torres e os edifícios da capital ganham um matiz dourado, amarelo-citrino, tipo golden shower, você não concorda?”. Apesar de não possuir esquinas, a cidade parecia mesmo linda, maravilhosa, a despeito de estar habitada por uma gente medrosa e covarde que preferia se esconder em casa do que ir à luta e enfrentar resfriadinhos. Notei que o segurança ficou tocado pela minha insegurança, ao ouvir palavras tão cálidas sendo proferidas pela boca de um mito que não admitia frescuras em hipótese nenhum, um cristão que apoiava a tortura, um pai de família com vocação fratricida, um ex-combatente de moinhos de vento que tinha dedicado a sua vida a matar, pelo menos, umas 30 mil pessoas, começando pelo FHC e terminando, injustamente, expulso das forças expedicionárias por atirar pedras contra a lua. Devo ressaltar que enfrentava dragões como homem, não como moleque. Começou a pintar entre nós um desconcertante clima de afetividade, e isso eu não podia admitir de forma nenhuma. Então, negacionista que sou, dei partida na motoca e acelerei o máximo que pude, torcendo para que a Terra realmente fosse plana, a fim de nos lançarmos, com moto e tudo, dentro de uma cachoeira cabulosa que desaguasse diretamente na Via Láctea. E por falar em leite, resolvi teimar com o psiquiatra e passear pela cidade. Meu plano piloto era difundir o vírus o mais rápido possível. Passei numa padaria para me encontrar com apoiadores das sandices diárias e com parlamentares mascarados que, há décadas, mamavam nas tetas do erário. Ninguém ia tolher a minha liberdade de ir e vir à padaria. Comemos todos os sonhos que tinham nas prateleiras e ninguém reclamou. Afinal de contas, a maioria do povo tinha tanta fome de ódio que não já fazia a menor questão de sonhar.
O seu ódio não será a minha herança
Eberth Vêncio
É escritor e médico.