A humanidade carrega até os dias atuais as chagas trágicas da discriminação racial. Além da ausência concreta de representatividade dos homens e das mulheres negras nas esferas públicas de poder, a não ocorrência de políticas sociais adequadas, no Brasil, tornou a realidade de boa parte da população negra excludente e desigual. Poder-se-ia invocar uma evolução em relação a outros tempos, mas o que se vê, em realidade, é a continuação velada das mais diversas formas de opressão racial. Episódios recentes indicam que os racistas seguem firmes e surgem de tempos em tempos para destilar ódio e preconceito disfarçados de piadas aceitas entre seus pares.
Mais de 130 anos após o fim da escravidão, as ocorrências raciais demonstram que há um aprofundamento da violência contra o negro no país. Mesmo com evoluções legislativas que alteraram há 30 anos a tipificação do racismo para crime, além do mandado da Carta Cidadã que o impõe como inafiançável e imprescritível, persiste o mito de que há uma democracia racial no país e existem, ainda, os que abraçam a ideia de que o mérito deveria nortear as ações raciais, em nome de uma inexistente igualdade constitucional puramente formal.
Não há nenhuma dificuldade em se constatar que a atrasada abolição da escravatura do país não seguiu acompanhada de nenhuma política racional de integração. Basta analisar os dados sociais de violência, economia e moradia para constatar o abissal distanciamento entre brancos e negros. A ocupação de espaços de poder, por sua vez, reflete toda essa extensa prática histórica discriminatória, tendo em vista que a insuficiente presença de negros nas posições de visibilidade gera uma sensação de não-pertencimento e distanciamento entre eles. Um quadro que parece não se alterar substancialmente com o passar dos anos.
Um olhar mais acurado revela que as evoluções nesse sentido foram insuficientes. A despeito da criminalização e das campanhas de conscientização, as práticas cotidianas de racismo seguem a todo vapor. Recentemente, nos Estados Unidos, o jovem negro AhmaudAubery foi assassinado a sangue frio enquanto se exercitava por ser confundido com um assaltante. No Rio de Janeiro, o garoto João Pedro foi morto com um tiro na barriga em uma operação policial — mais um na estatística de extermínio constante dos jovens negros de periferia. Para completar os lamentáveis exemplos, uma adolescente negra foi alvo de uma série de insultos criminosos no colégio única e exclusivamente pela cor da sua pele — o que envolveu desde sentenças como “quanto mais preto, mais preju” até o desumano “ela não é gente”.
É indiscutível que a escravidão teve fim apenas formalmente, mas continua a existir, agora sob roupagem diferente. Ainda que haja múltiplos esforços no intuito de dirimir as ocorrências de crimes raciais, a realidade evidencia que mesmo as políticas afirmativas estão longe de resolver o problema — tanto de representatividade quanto de preconceito. A discriminação racial, como a pandemia, é um mal invisível que está impregnado no convívio humano. E, infelizmente, não são notas de repúdio ou alertas nas redes sociais que irão mudar essa triste realidade histórica. Para o coronavírus, pelo menos, há uma expectativa de cura ou vacina.