A fria noite paulistana lhe trouxe sentimentos desgostosos. O chamado do hospital, minutos antes, fizera seus movimentos cardíacos dispararem ao ritmo dos toques do celular. Não quisera ouvir todo o conteúdo; dado o indisfarçável tom do outro lado — sereno, mas trêmulo —, saber o interlocutor já era o suficiente. E apenas seguiu a pé rumo ao centro médico. Engolir já se mostrava literalmente impossível e o choro era apenas contido pelo martelado balbucio de seu pai sobre ser forte em momentos de fraqueza. Mas as lágrimas teimavam. E, medrosamente, desciam.
O senso comum indica ser a vida humana o mais valioso dos bens. Os motivos parecem óbvios: a existência é pressuposto básico para que venham a existir quaisquer direitos de um ser vivo. O pensamento voltou ao pai e também ao quase-choro. Não sabia o que estava vestindo; saiu de repente, queria apenas chegar ao hospital o mais rápido que a física lhe permitisse. Agora a razão lhe indicava a desimportância sobre o começo da vida. O inevitável fim era traumático o suficiente. Estava angustiadamente desolado.
Veio à mente o noticiário dos dias anteriores. Empresários tentavam a todo custo incutir na população a ideia de que sem o comércio também não haveria existência condigna. Porém a gota d´água mesmo foi ouvir de um político que a liberdade importava mais do que a saúde.
Sua vida inteira fora dedicada à ciência. O pai, merendeiro de escola pública, ensinara-lhe os valores do bom aprendizado para norteá-lo a alcançar o que não pôde. E estava conseguindo. Em seu ritmo, mas conseguindo.
Seguia seu rumo sem entender o porquê daquilo tudo. Finalmente chegou. Cada segundo em direção ao leito parecia infinito. Apertou o passo, segurou o choro e, à porta, o médico não escondia o semblante. Ouviu que o pai mudou de quadro em questão de minutos. Falara sobre a saudade de seu clube do coração com alguém e de repente passou a gritar por não conseguir respirar. Os enfermeiros não obtiveram êxito. Clamou pelo filho aos prantos e, em seguida, foi-se. O choque ao ouvir o relato fez com que mal conseguisse assinar os termos necessários. Falhou em não chegar a tempo de trocar um último olhar com seu primeiro e único herói. A doença matou os sonhos que ainda estaria a realizar com o velho. E os idiotas úteis fazendo acampamento em frente ao Congresso por reabertura do comércio.
Lembrou mais uma vez dos empresários, do papo sobre CNPJ. Os imbecis, forjados em diplomas imaginários, imiscuíam-se em contrariar a ciência e fazer medrar suas paspalhices. A volta lhe figurava mais longa do que a ida. E também muito mais pesada.
Concluiu que a decadência humana, indisfarçadamente progressiva, era sinais da ignorância coletiva. Por isso não mais precisava esconder seu choro — e talvez até o seu velho compreendesse. O tempo-rei falhou em conjunto com seu atraso involuntário. Mas sua culpa era confortada por não estar no mesmo lado da trincheira. Não, não fazia parte daquele circo. Mirou o céu e viu uma estrela cadente. Era o pai, sem dúvida, provavelmente espalhando o orgulho que tinha de seu filho sobrevivente no frio mundo dos CNPJs.