Eu sabia, ah, sabia, sim. Era certo que isso havia de acontecer. Uma hora, lá pelas tantas do encantamento, nossas gentilezas e coincidências, nossas impressões compartilhadas, figuras trocadas, opiniões repartidas e miradas divididas se tornariam outra coisa além da pura e simples conversa generosa. Só podia.
Toda a nossa franqueza em recordar e conhecer as histórias de cada um, nossa disposição em se ouvir e compreender como fôssemos o universo inteiro, a despeito dos apelos aborrecidos do resto do mundo, tudo isso só podia dar no ponto a que chegamos. Só podia dar no que temos agora.
Você e eu brincamos com fogo, cruzamos a linha, corremos todos os riscos voando baixo nossos sonhos de grandeza, abraçando o mundo de mãos dadas, desafiando todos os limites. E agora pronto.
Chegamos lá e não nos contentamos. Nós passamos adiante. O amor em nós, o amor e suas sandices nos transformaram em descobridores loucos no caminho das Índias. Nossas viagens amorosas rumaram para longe e fizeram a vida virar do avesso. O universo se expandiu além das previsões dos especialistas, os astronautas encontraram cachoeiras na Lua, os bichos de casa aprenderam a falar como gente, como a gente.
Juntos, assumimos a presidência do mundo e criamos a quatro mãos o Estado Soberano Universal da Gentileza. Não por decretos, mandatos, disposições legais e burocráticas, tampouco por levantes armados e invasões bárbaras. Nada disso. Construímos nossa nova terra pela influência graciosa e impecável das simples e irrefutáveis coisas do amor e, aos poucos, todos nós, habitantes desse espaço finito, retornamos à condição original de bichos, trêmulos animais atraídos pelo calor do fogo do afeto no frio caminho solitário em que a vida havia se transformado.
Nossa guerrilha amorosa bombardeou as ruas de flores, amansou os ânimos violentos com gestos de apreço, acalmou rompantes bruscos com palavras doces e ações generosas. E nós vencemos. Todos nós ganhamos.
Em nosso encargo venturoso, toda competição se tornou justa e com o único objetivo de construir e dividir. Erguemos um mundo em que a cada um se concedem os frutos legítimos de seu trabalho e seu empenho, sem favorecimentos cretinos e covardes aos amigos do rei, sem preferências estrábicas determinadas por convenções limitadas, a cor da pele, a religião, a preferência sexual, o tamanho da conta corrente ou o sobrenome de quem quer que seja. Nós fizemos uma terra nova em folha e prosa e verso e capa dura.
Nosso desgoverno instituiu a ternura livre, a brandura voluntária, a delicadeza sem interesse. Em todas as casas, você e eu ensinamos pelo exemplo a dar as mãos ao outro e ensinar-lhe a seguir em frente por sua própria conta, na santa liberdade de viver e aprender a ser feliz pelo caminho.
Na eternidade do nosso amor generoso, educamos nossa prole na atmosfera do absoluto respeito aos direitos e aos deveres de cada um. Nossa revolução pessoal vingou na insistência de viver um dia de cada vez. Entre nós, cada dia de labuta que chega ao fim é festejado como um espetáculo bem sucedido, os trabalhadores se cumprimentando e parabenizando pela alegria do dever cumprido.
Você e eu fizemos tudo isso e tanto mais. Eu sabia. Tanto amor só podia dar nisso. O que vem agora, para onde seguirá o nosso mundo e sua gente já quase não nos cabe. Mas o que nos resta fazer, por pouco que seja, haveremos de fazê-lo com empenho.
E se um dia nos perguntarmos, sem mais, em tarde mansa de céu azul sem fim, o que fazer, jamais teremos dúvida: nós faremos amor!