Tradução de Ana Carolina Eiras Coelho Soares — Especial para a Revista Bula
Estamos vivendo a crise da Covid-19 como uma longa temporada de indeterminação. Quando vai acabar? Como vai terminar?
Apesar dos comentários de vários intelectuais públicas/os, são poucas as respostas que se oferecem sobre o que o futuro pode reservar, e ainda menos sobre como chegar lá. Dessa forma, a pandemia expôs mais uma das vulnerabilidades do nosso momento: a dificuldade de nos imaginar além dos mundos atuais em que vivemos. Assim como acontece com outras falhas (sobre as quais falaremos mais adiante), o problema não é novo, como François Hartog nos lembra quando escreve sobre “presentismo”. Em algum momento do século 20, perdemos nossa crença no poder redentor da história e, portanto, na garantia de um futuro melhor. Wendy Brown coloca isso sucintamente: “Sabemos que estamos saturados pela história, sentimos a força extraordinária de suas determinações; também estamos mergulhados em um discurso de sua insignificância e, acima de tudo, sabemos que a história não mais atuará (tal como ‘sempre já’ não o fez) como nossa redentora”. A perda da garantia da história não significa que não temos futuro; significa apenas que somos únicos responsáveis por aquilo que pode vir a ser.
Evidentemente, como o vírus revela um desastre social atrás do outro, há piedosas esperanças de um mundo melhor e mais justo. O “NY Times” dedicou uma seção inteira para ressaltar a necessidade de uma maior e melhor igualdade e justiça; mas aquilo que poderíamos chamar de análise crítica esteve completamente ausente. Assim como as/os comentaristas convocadas/os pelo “Times”, outras/os analistas só têm destacado aquilo que a crise tem revelado fortemente e o que tem sido evidente o tempo todo: as desigualdades flagrantes de classe e raça; a precariedade de milhões de famílias trabalhadoras; a violência provocada pela privatização dos sistemas de saúde e outros serviços sociais; a conexão entre as mudanças climáticas e a suscetibilidade a doenças (sendo a asma um dos exemplos em questão); a depredação especulativa das empresas farmacêuticas; a ganância insaciável dos bancos e dos gestores de fundos de cobertura; os terríveis efeitos sobre o bem-estar público de anos de cortes fiscais e medidas de austeridade; o despreparo dos governos para enfrentar a situação; o enfraquecimento da consciência coletiva pelas ideologias neoliberais.
Após algum tempo, a leitura desses relatos de patologia socioeconômica e sofrimento humano só serve para agravar a depressão e a sensação de impotência que acompanham a quarentena e o confinamento. O que nos tem sido dito é o que já sabemos — os sintomas e os custos da doença estão incessantemente bem descritos. Isto não é crítica ou análise crítica, porque não nos são oferecidos os recursos para pensarmos sobre aquilo que poderia se constituir como uma cura para os males sociais que ela tão frontalmente expôs.
A maior parte da conversa sobre o futuro é, ironicamente, sobre um retorno ao passado. O desejo mais fervorosamente expresso é de um retorno ao normal, à vida cotidiana dada como certa, que levávamos antes da chegada deste vírus. Na terminologia médica, crise representa o momento determinante que conduz ou à recuperação ou à morte. A analogia social se baseia na sinonímia de recuperação e normalidade. A correção do normal, segundo nos dizem, poderá exigir mais regulamentação (das grandes indústrias farmacêuticas, bancos, fundos de cobertura) e a restauração de algumas redes de proteção para os pobres, inclusive a assistência médica universal. Bernie Sanders foi o mais explícito e eloquente sobre o que precisava ser feito, mas sua chamada para a “revolução” foi silenciada, tendo algumas partes aproveitadas pela campanha presidencial de Joe Biden. Se a história passada é alguma indicação, a Covid-19 terá proporcionado a oportunidade de uma maior consolidação do capitalismo sob a égide do Estado, como aconteceu na sequência da Grande Recessão de 2008 (isso para não mencionar o que ocorreu em seguida às pragas dos séculos anteriores).
Onde estão as análises que apontam para fissuras nas estruturas de poder que podem ser pressionadas para provocar formas de mudanças sérias? Algumas delas parecem vir de protestos no campo de profissionais médicos — especialmente de enfermeiras — que, mesmo estando na linha de frente do atendimento de emergência, têm se manifestado em sua fúria diante da escassez de suprimentos, das falhas em garantir sua segurança e dos cálculos mercenários dos hospitais com fins lucrativos. Em nome do bem comum, elas têm denunciado os grupos políticos de direita exigindo “liberdade” e o exercício dos direitos individuais. Uma enfermeira uniformizada ficou sozinha diante de uma multidão de desmascarados apoiadores do Trump cujas ações, disse ela, ameaçavam o direito à vida do resto de nós. No coração do seu protesto estava uma insistência na interconexão de nossas vidas, uma recusa do individualismo libertário que vem caracterizando o neoliberalismo.
Por todo o país, há grupos afro-americanos se organizando a fim de tratar de casos específicos de discriminação racista numa ressonância das campanhas “vidas negras importam” ocorridas há alguns anos. Trabalhadoras/es dos “centros de atendimento” da Amazon têm protestado contra as condições de trabalho que desrespeitam as regras de distanciamento social, negam licenças médicas e punem aqueles que se atrevem a reclamar. Membras/os das/os Trabalhadoras/es de Comunicação da América nas fábricas da General Motors têm condenado essa empresa por não utilizar sua força de trabalho para fabricar os ventiladores que os hospitais, desesperadamente, necessitam. Em vez disso, a empresa demitiu trabalhadoras/es e o espaço da fábrica permanece vazio. Estas/es trabalhadoras/es estão chamando as/os cidadãs/os para reivindicar que o presidente use sua autoridade para exigir a produção de ventiladores em dependências das indústrias que não estejam sendo utilizadas. Essas/es trabalhadoras/es não são as/os únicas/os exigindo que as corporações levem em conta o interesse público.
No entanto, há pouca cobertura jornalística destes eventos, o que dificulta a percepção do que provavelmente é um padrão crescente de contestação. Em vez disso, as primeiras páginas do “NY Times” e do “Washington Post” nos enchem de histórias das/os apoiadoras/es de Trump e seus protestos — organizados e pagos por seus financiadores de grande capital. Se há um “Estado profundo” a ser descoberto, este não está nas paranoicas fantasias da direita americana, mas na própria administração Trump, apoiada por financiadores cujo anonimato é protegido pela decisão Citizens United da Suprema Corte de 2010. Parece haver um desejo intencional — pelo menos por parte da grande mídia — de minimizar a importância dos protestos que representam críticas sérias e sistemáticas, que podem apontar para um futuro alternativo. Na ausência de atenção da mídia, as/os intelectuais críticas/os deveriam estar chamando a atenção para estes protestos, amplificando sua visibilidade, participando dos seus projetos, atentos às suas chamadas. Porque são estes protestos que estão identificando as fissuras — os pontos de pressão — capazes de proporcionar perspectivas para o futuro.
Michel Foucault caracterizou esse tipo de protesto como formas de insubordinação, uma recusa não da lei ou do governo em si, mas antes a expressão do desejo de “não ser governado dessa forma”. “Quero dizer que, nesta grande preocupação sobre a forma de governar (…) identificamos uma questão permanente que seria: como não ser governado assim, por isso, em nome desses princípios (…) não dessa forma, não para isso, não por eles.” “Não querer ser governado assim significa também não querer aceitar essas leis porque são injustas, porque (…) ocultam uma ilegitimidade fundamental.” O teste de legitimidade pode vir de sistemas anteriores de organização social de bases comunitárias, ou de modelos coletivos contemporâneos de convivência em bairros ou em locais de trabalho, onde a interdependência já fornece o espaço para distinguir o certo do errado. Em outras palavras, as formas de resistência não precisam ser inventadas pelas/os teóricas/os; trata-se de um aspecto integrante das complexas relações de poder em qualquer sociedade.
Em um artigo de 1994, Hortense Spillers, escrevendo sobre a responsabilidade dos “intelectuais negros criativos”, rejeitou a ideia de que era função deles “salvar nosso povo”. Pelo contrário, disse ela, “parece-me que a única questão que o intelectual pode realmente utilizar é: Até que ponto as ‘condições da prática teórica’ atravessam a ele ou ela, como o lugar vivo de intervenção significativa?”
O teórico cultural Fred Moten lê isso como um chamado às/aos intelectuais para acompanharem as/os ativistas, para explorar criativamente as análises que seus protestos oferecem. Parece-me que esse deveria ser o nosso trabalho agora — não detalhar infinitamente as injustiças que esta crise só tornou mais evidente —, mas em vez disso, buscar as recusas que podem se tornar as alavancas para as oportunidades de um futuro alternativo.
Joan Wallach Scott é professora da School of Social Science/IAS Princeton. Considerada internacionalmente uma referência pioneira nas áreas de História francesa e dos Estudos de Gênero.
Ana Carolina Ana Carolina é professora da FH e do PPGH/UFG; Historiadora; Escritora; Feminista; Mulher; Mãe de duas crianças e Plantadora de Árvores.