A “Odisseia”, cuja autoria é atribuída a Homero, é uma das mais inspiradas aventuras imaginadas pelo espírito humano. Um tesouro cultural muito bem lapidado. O grande poema épico narra o regresso de Ulisses a sua terra natal: a ilha de Ítaca. Utilizando-se da coragem, astúcia e inteligência, o herói grego vence os obstáculos que se interpõem em seu caminho. Trata-se de uma história de superação, cujo foco é o sofrimento humano. Esses feitos forjaram um clássico sem par na literatura mundial.
Trinta e dois séculos depois, numa geografia diametralmente distinta, nos deparamos com outro herói; outro Ulisses. Este, de carne e osso. Alguém que podemos até tocar e que não protagonizou nenhuma viagem fantástica para mundos desconhecidos. O Ulisses que os jornais descobriram reside em Manaus. Ele também é personagem de uma guerra, onde o inimigo não é imaginário, mas é invisível. Por isso, não pode ser enfrentado com lanças e espadas. Mas com uma vacina, que ainda não foi inventada.
O nosso Ulisses amazônico acompanha diariamente a batalha — e a tragédia — pela retaguarda, em face da sua profissão: ele é coveiro. Com o avanço da pandemia aumentou substancialmente a sua carga de trabalho. Em 16 anos na lida nunca tinha visto nada igual. As mortes se multiplicam em tal velocidade que os enterros são feitos até em valas comuns. A média de mortes diárias saltou de 30 para 100. Ulisses, homem de fé e coragem, confessa que no princípio se assustou (não usa a palavra medo), mas depois se acostumou.
Ulisses em sua simplicidade ignora que a sua Manaus vive uma espécie de terra de Hades, o reino dos mortos, onde peregrinou o seu homônimo grego. O trabalho exaustivo de Ulisses, esse brasileiro de estatura mediana, exige destreza, paciência e muita habilidade. Ou seja, qualidades das quais não podia se furtar o personagem homérico. Todos os dias Ulisses enfrenta uma batalha real. Paramenta-se com equipamentos de proteção para driblar a velha e cadavérica inimiga. E vai executar o seu ofício.
O nosso Ulisses não teme a fúria dos deuses, dos ciclopes, das ninfas e das feiticeiras disfarçadas, tampouco se deixa levar pelo canto de sereia daqueles que vivem a propagar que a pandemia é uma “gripezinha”. Isto porque, tal como o marido de Penélope, Ulisses traçou uma meta diária: voltar com segurança e sem o vírus. Embora viva no reino das águas, o Ulisses amazônico não regressa de barco. Utiliza a força das pernas para pedalar com segurança, distante da ira de Poseidon.
Na “Odisseia”, Ulisses se equilibra entre o destino previamente traçado e o livre arbítrio. Mesmo assim, não dispensa, para alcançar o seu intento, a ajuda da deusa Atena. E se fia no alerta de Zeus quanto à fragilidade do ser humano. O nosso Ulisses é ignorado pelos deuses do Olimpo encastelados no Planalto Central. Resta-lhe seguir o livre arbítrio para, ao fim do dia regressar a sua Ítaca, consciente da sua fragilidade. Em assim sendo, não se descuida. Vai direto para o chuveiro. Quer, na sua humana condição, preservar seus tesouros: sua esposa, filha e netos. E isso equivale a um reino.
Francisco Barros é jornalista, professor e diretor da Interativa Comunicação.