“Oh! Como foi que chegamos a isso?! De onde saíram essas criaturas toscas que agora nos governam?”, perguntam os cronistas aos céus que, claro, não sabem a resposta. Mas eu sei: a culpa é dos autores de autoajuda. Escrevo isso e já ouço o leitor reclamando: “Lá vem o Aran encher o saco do Cortella de novo!” Nada disso. Dessa vez vou encher o saco dos editores de livros também. Prometo.
Por exemplo. Quando eu digo “narrativa”, você pensa em quê? No perfume de cravo de Gabriela, nos olhos inquietos de Capitu, nas elucubrações de Quincas Borba ou na sagacidade de Mandrake? Nada disso, né? Quando digo “narrativa” você pensa é em bolsonarista brigando com lulista para emplacar a melhor versão de um fato, certo?
Então… nós não sabemos mais o que é “narrativa” porque não existe mais “narrativa” nas livrarias. Quando o mundo não tinha coronavírus, eu costumava visitar pelo menos duas livrarias uma vez por semana. Buscava um bom romance, talvez um livro de contos, uma antologia, quem sabe, ou então uma novela divertida.
E o que encontrava? Livros de autoajuda. Monturos e monturos de livros de autoajuda ensinando como encontrar a iluminação, abrir o próprio negócio, pedir aumento pro chefe, perder peso, vencer na vida e filosofar sobre a morte da bezerra. Ou é isso ou é livro de ativista político que, no fundo, no fundo, bem lá no fundo, também é autoajuda. A dura luta das feministas albinas do Kafaristão só é descrita para motivá-lo, logo, é autoajuda também. Karl Marx era um Augusto Cury que conhecia economia, mas estou me desviando. Perdão. Acontece muito quando a gente não tem mais “narrativa” no país.
Ficcionista escreve porque precisa se livrar dos demônios interiores e a ficção é tipo um purgante. Editor, não. Editor tem de fazer dinheiro. E publicar livro de autoajuda é muito mais fácil e rápido do que sair em busca de um novo Jorge Amado, um novo Rubem Fonseca, um novo João Ubaldo, um novo Márcio Souza, um novo Campos de Carvalho, quiçá, um novo Machado de Assis. Sempre quis colocar “quiçá” num texto. Consegui.
O problema disso é que o país fica sem um “imaginário”, não possui uma “narrativa, não constrói uma “cultura”, não identifica sua própria “história”. E a literatura, querida leitora, é a base de tudo. Veja as novelas de TV, por exemplo. Dias Gomes leu muito José Cândido de Carvalho para criar seu “Bem-Amado”. Mas sem a literatura como inspiração, o que resta? A Regina Casé reclamando da vida. E a culpa nem é dela. A culpa é do “imaginário” brasileiro que ficou mais pobre que as domésticas que a Casé interpreta.
Morreu Rubem Fonseca. Morreu Garcia-Roza. Morreu Aldir Blanc. Morreu Sérgio Sant’Anna. Quem vai ficar no lugar deles? Algum filósofo da obviedade ou a mais recente sensação do YouTube? Romancista, eu já sei que não é.
Um país precisa ser imaginado, narrado, criado, inventado, construído, esculpido, literalizado e ficcionalizado. Não dá para entupir as livrarias de autoajuda e depois reclamar que o país só tem iletrado. É simples assim.