Havia uma frieza generalizada naqueles dias, uma espécie de pandemia de indiferença que levava muitos corações velhos a definharem dentro dos peitos, até interromperem as suas inatas missões de pulsar e pulsar e pulsar. As mortes provocavam, não apenas, empáfia e mau humor nos mandatários máximos da nação, como, também, tribulação dobrada para os órgãos governamentais competentes, os quais tinham a obrigação constitucional de interromper os churrascos oficiais para sair catando restos de humanidade, para onde quer que apontasse o nariz do Estado. Falava-se de uma leva cada vez mais crescente de cães emudecidos, mansinhos, desacorçoados, pajeando os seus donos — espantalhos de carne-e-osso — sentados em poltronas fedorentas, puídas pelo abandono. O sofrimento moral cortava o apetite de qualquer um que não fosse um canalha, quem dirá, de um animal dotado de princípios morais. Um dogue, detentor de um pedigree compatível com maior hostilidade, fugiu à regra geral da vigília domiciliar e foi flagrado pela equipe de cata-gente mastigando nacos de rosto de uma velhota que, pelo que não restou apurado com os vizinhos — verdadeiros bananas — parecia estar adoentada há séculos, combalida pelos excessos de açúcar no sangue e de amargor no coração. Um dos maqueiros quis aplicar, ali mesmo, sobre o tapete pestilento da sala, o definitivo recurso duma bala-de-nióbio cravada entre os olhos tristinhos do animal, ao que foi, asperamente, interrompido pelo chefe da operação sanitária, que via, sim, com simpatia, a atitude inovadora da fera. Carne doce era uma iguaria absolutamente irresistível para um cão, ainda mais, quando um bicho daquele tamanho se via afrontado por uma fome indizível. Logo, o canzarrão não apenas foi salvo, como acabou adotado pelo homenzarrão que o tinha livrado de tomar-azeitona-na-fuça, um dos instrumentos mais propalados pelas autoridades governamentais, com a finalidade de resolver problemas diversos de relacionamento, em especial, as divergências políticas entre eles e nós. De maneira geral, os canídeos que ficavam órfãos dos donos — uma cambada idosa, sem parentes, sem amigos — só voltavam a comer a carniça dos dias, depois que os treminhões basculantes, equipados com vapores congelantes advindos das cordilheiras andinas, passavam, de domicílio em domicílio, fazendo barulho, soltando fumaça, fodendo com o que restava de paz interior e da camada de ozônio, a fim de recolher a carcaça dos contribuintes que não tinham mais como contribuir com a sociedade, nem pagando impostos, nem postando melodramas nos ouvidos alheios, pois, haviam sucumbido ao abandono e à solidão, para virarem números frios da estatística ministerial e matéria-prima quente para ghostwriters como eu. Os canis andavam lotados de cães andaluzes à beira de um ataque de raiva. Nunca antes na história tinha-se fabricado tanta hidrofobia e sabão-de-bola, a partir da gordura animal. Era o melhor saponáceo que se tinha notícia nos guetos. Mil vezes melhor do que aquele preparado com banha-de-dondoca surrupiada das clínicas de cirurgia plástica. Era um tipo de sabão que não fazia espuma, porém, limpava que era uma beleza. Por iniciativa do governo, os urubus estatais eram instruídos a executar voos rasantes sobre as comunidades pobres, fazendo chover horrores de bolotas de sabão. Só faltava, agora, a água para aquele povo sofrido, ossudo, feio como o capeta, lavar as mãos, enfezar os micróbios, tomar banho e, de quebra, no meio do cu também. Deus, que estava sempre acima de todos e de tudo, haveria de mandar chuva, em breve, para resolver mais um dos insondáveis dilemas criados pelo ser humano. A lama, por exemplo. A lama que, na infância, servia como brincadeira de criança, para se transformar, na vida adulta, em sinônimo de ruína moral ou financeira.
Enterrando histórias na vala comum da indiferença
Eberth Vêncio
É escritor e médico.