Eu sou uma mãe que trabalha com duas filhas pequenas no meio da pandemia. Apenas essa frase é o suficiente para muitas histórias, debates e talvez — como pesquisadora que sou — uma tese. A redundância da frase “mãe que trabalha” é a mais evidente. Toda mãe trabalha. E muito. Acontece que, para além de todo o trabalho da função “mãe”, eu tenho um “trabalho remunerado”, ou seja, eu agora tenho compromissos remotos e online no mesmo lugar em que cuido e mantenho minhas filhas vivas e livres do vírus: dentro de casa. É um privilégio? Sem dúvida: é um grande privilégio. Dá um trabalho imenso? Sem dúvida, também. Eu, que sou professora e acredito no provérbio africano: “é preciso uma aldeia para se educar uma criança”, de repente, tornei-me a tribo inteira das minhas crias. E, é claro que já pensei em uma dúzia de histórias engraçadas geradas por essa circunstância extraordinária: quase todas envolvem pequenos (ou grandes, mas isso não vem ao caso) descontroles maternos, episódios de “quase tragédias” — em que o plantão de anjos da guarda infantis mostraram mais efetividade que toda a história de escolta do Bope — ou situações de doçura amorosa que mostram o poder e a força do amor no meio do caos.
São histórias anedóticas que inundam as prateleiras das vivências maternas e paternas. Mas, hoje não. Essa semana eu quero falar sobre “crianças” e educação. Muito já se falou sobre isso. Mães enlouquecidas pedindo empatia e menos exigências, afogadas em milhares de trabalhos escolares e aulas remotas e, ao mesmo tempo, mães precisando ocupar as crianças, e talvez, justificar o pagamento das mensalidades cobrando da escola mais tarefas. Mães preocupadas com o “atraso escolar” e com o déficit do ensino no futuro e exaustas por cumprirem tantos afazeres. E, na realidade das escolas, mães professoras instadas a trabalharem o triplo para manter seus salários e empregos, cuidando de suas crias em casa e ministrando aulas online. No meio de tudo isso: as crianças.
Não tenho a ilusão de achar que estamos perdidas. As mães não estão perdidas e enlouquecidas. Estamos exaustas. Porém, estamos orientadas e lúcidas numa determinada lógica de viver a maternidade. Desde a notícia de que “seremos mães”, fomos orientadas a sermos as “melhores mães do mundo”. E a melhor mãe do mundo não deixa seu filho comer besteira, não deixa sua filha ver qualquer desenho, ouvir qualquer música: tudo é planejado para estimular ao máximo a criança, para que ela atinja todo o seu potencial. E, mesmo concordando com a frase “é preciso ter equilíbrio”, empurramos mais um rabanete feliz (cortado em rodelas sorridentes) e fazemos as vídeo aulas obedientemente. Por quê? Porque não suportamos não ser “as melhores mães do mundo”.
Acontece que essa pandemia colocou todo mundo dentro do mesmo ambiente e não temos mais espaço para comermos aquele chocolate escondido ou ouvirmos funk, enquanto colocamos “Mozart baby” na playlist do carro. (Faça todas as variações de classe aqui, incluindo substituir chocolate por “Biscoito Fofura” ou taça de Moët Chandon e carro por ônibus ou trem. A questão é: nós, mães, queremos o melhor para nossos filhos, mas com uma frequência muito maior do que queremos admitir, nem sempre agimos como falamos). O “faça o que eu digo e não o que eu faço” esconde a nossa necessidade de desenvolvermos projetos perfeitos de reprodução humana: nossos filhos, nos ensinaram, são a medida de nosso sucesso. As mães exibem filhos como troféus e, as de hoje em dia, criaram concursos cada vez mais apurados de disputa.
Nesse ambiente, fica claro que as crianças deixam de ser pessoas e as mães, também. Há alguns dias, Clara Rosa, minha mais velha, estava com dúvidas entre palavras oxítonas/paroxítonas e proparoxítonas. Eu estava com prazo para cumprir e trabalhando em mil tarefas na casa. Meu companheiro, na mesma situação. Havia tensão e começamos todos a nos irritar. Em certo momento aquilo me pareceu tão absurdo, que percebi o óbvio: eu sempre adorei português e também nunca gostei muito dessas regras. Eu só acertava quando elas faziam sentido. O canto é algo que faz sentido para mim e para Clara. Então eu respirei e comecei a cantar as palavras. Eu cantava e pedia para Clara Rosa cantar junto e dizer onde estava a “força” da palavra. E expliquei que a língua portuguesa fazia essa classificação de palavras pelo som. As dúvidas acabaram e minha filha tirou o exercício “de letra” com ritmo e melodia. E ela sorriu. Minha pequena filha estava preocupada e eu não tinha percebido. Passei a ligar o rádio todos os dias e a dançar e cantar pela casa. Minhas filhas riem e dançam junto ou mesmo só riem de mim. E isso basta.
Eu me peguei pensando que a única maneira dessa quarentena funcionar é fazermos as coisas que fazem sentido. É sermos verdadeiras. É dizer “Cansei, vá fazer qualquer coisa, mas me deixe quieta”, “Sim, esqueça a aula, vá ver desenho (ler/ouvir música/pintar/dançar/jogar videogame) ou também dizer “Agora você precisa cumprir alguns compromissos”. É permitir ver a si e às suas filhas como pessoas. É entender que as crianças vão crescer e achar seus caminhos. E que, pelo menos aqui em casa, cantar funciona melhor que decorar regras gramaticais.
Não sei se consigo abandonar o projeto “melhor mãe do mundo”, mesmo sabendo das implicações dessa paranoia coletiva contemporânea, mas sei que posso fazer um esforço consciente de tentar tirar a responsabilidade das minhas filhas de serem “perfeitas”, deixando-as mais livres para descobrirem o que as fazem sorrir. Elas têm uma vida inteira pela frente e já estão vivenciando um momento histórico que as marcarão para sempre. O único atraso que elas podem sofrer é se, ao se tornarem adultas, só conseguirem se lembrar dessa época como um tempo de amarguras, tédio, tarefas insossas e sofrimento.