Não sei se vocês , quando crianças , brincavam de se divertir com eventos pueris, estimulantes e reveladores, também. Ou se os pais ou professores atentos preocuparam-se em repassá-los a vocês no intuito de colorir, de um jeito novo, as aquarelas dos seus primeiros anos de vida.
Havia folguedos diversos, de roda, com que nos entretínhamos, como os “Escravos de Jó”, “Passa Anel”, “Passa, passa gavião” “telefone sem fio” e outras fascinantes atividades lúdicas que deixavam a meninada flutuando, com a alegria em festa e a imaginação acesa.
Curiosidade, competição, suspense, agilidade mental e física figuravam como molas-mestras destes momentos mágicos e para sempre eternos em nossos verdes sonhos.
Estas imagens, por sinal, vêm à mente, carreadas dos tais movimentos de “passar adiante”, como em certas práticas lúdicas. Em algumas, como no “Passa Anel”, não poderíamos nos deter com o “Anel” nas mãos, que deveria seguir seu rumo entre a criançada envolvida na brincadeira. O valor, portanto, deveria circular entre o grupo, não podendo permanecer com ninguém.
Talvez você se pergunte agora: o que as brincadeiras acima têm a ver com o título da nossa crônica. Tem tudo. As situações descritas esboçam as primeiras perdas e ganhos de nossa tenra existência.
Talvez se estendam, na atualidade, à pobre autoestima nossa, ao abandono de nossos anseios e ideais em várias esferas da nossa vida. Nós que integramos este amado, sofrido e ingênuo irmão brasileiro, que passa adiante, sem alternativas aparentes, seus valores e desvalores. Depositando-os lamentavelmente nas mãos nos políticos corruptos, nas crenças ilusórias que infestam e se multiplicam nesta terra, outrora dita abençoada.
Porque, na realidade, temos mania de passar adiante nossos defeitos, responsabilidades e qualidades.
Impressionante como vimos deixando o Brasil, nosso povo e nosso bolso de lado. Os impostos, a roubalheira metralhada aos gritos e grafismos na mídia, tingida nas manchetes dos principais jornais não nos impulsionam, não nos arrancam a apatia, nem mobilizam, diante da calamidade dos fatos, para uma urgente tomada de atitudes de cunho nacional e social.
Vamos combinar, vivemos com o amor próprio derreado aos nossos pés. Sem direitos a legítimas demandas, esmagados por deveres submissões a torto e a direito.
Segue-se frase bombástica. Eu não valho nada. O que ressalta em mim e o que considero como qualidade não figuram dentre meus reconhecidos talentos e aptidões mentais, por exemplo. Trocados hoje pela bolsa Fendi, meu relógio Cartier, as viagens muy ricas que já fiz à Ibiza.
Porque, é impossível negar aos olhos hiper tecnológicos do século 21: eu já deixei de ser uma pessoa faz tempo. Assim, preciso angustiadamente da aprovação de todos que me seguem. Gente virtual ou não.
Propagar aos quatro ventos para o irresistível mundo das aparências como “é grande o meu amor por você”. Sentimentos antes preservados. Portanto, sou uma boneca, um selfie. Uma repetitiva declaração de beleza, alegria e sucesso nas redes sociais. Objeto de consumo idolatrado a ser regada de champanhe e caviar existência afora.
Temos mania de passar adiante nossos defeitos, responsabilidades e qualidades. Abandonar a percepção do nosso corpo, abdicar da privacidade, particularidades, inteireza psíquica, diferenças estruturais básicas, mesclando-as com outros pedaços de milhões de criaturas na web, em estado tão ou mais fragmentado e pulverizado.
Como é insuportável também flagrarmos e tolerarmos o convívio íntimo com ladrões insidiosos que nos habitam ou visitam à nossa revelia. O ódio, a mentira, o ciúme, a inveja. A impiedosa e tantas vezes infundada maledicência.
Sem dúvida, temos mania de passar adiante nossos defeitos, responsabilidades e qualidades. Dizer que são os outros que mentem para nós, pobres e indefesos anjinhos relacionais. Inaceitável isso, claro, pois somos perfeitos! Afinal, tudo de ruim, apodrecido e abjeto pertence às demais pessoas.
“Toma que o filho é teu” — expressão popular que atravessa e gerações. A culpa, essa maldita. A culpa é sempre alheia, respaldada também biblicamente. Até Pôncio Pilatos, no ato da condenação à morte de Jesus, lavou suas mãos de toda e qualquer responsabilidade.
Passar adiante nossas deliberações últimas, livrarmo-nos delas rapidamente é o que interessa. Brincar de viver à vera realmente é um desafio, sem transferirmos para as outras pessoas nossa genuína herança: tristezas, virtudes, atitudes, emoções de toda ordem, valores, ações ou inações.
Alguém deve se encarregar disso sempre. Seja um cidadão comum ou um errático ser humano à cata de alguma ínfima integridade e coerência, encontradiças ainda nesta terra de clamores e esperanças.