Perec (1936-1982), escritor mais popular na França que no Brasil, tem uma obra bastante heterogênea, de caráter experimental. Seus livros mais importantes, como “As Coisas”, de 1965, sua primeira publicação, ganhador do importante prêmio Renaudot e “A Vida: Modo de Usar”, considerada sua “obra-prima”, de 1978, foram algumas das poucas traduzidas para o português. Além disso, a quantidade de escritos não publicados e não muito divulgados no Brasil é imensa. Uma das características importantes de sua escrita é a obsessão que o escritor desenvolveu pela criação de listas, inventários e vários tipos de regras de escrita pré-definidas, as famosas “contraintes” de escrita. Além disso, teve importante participação em um grupo chamado Oulipo, “Ouvroir de Littérature Potentielle”, nos anos 60, que tinha como um dos membros ilustres ninguém menos que Ítalo Calvino. Todos estes aspectos reforçam sua predileção pelo caráter ao mesmo tempo experimental e lúdico da escrita. “A Vida: Modo de Usar”, romance que trouxe a Perec sua independência financeira e que possibilitou sua dedicação exclusiva ao ofício de escritor, tem como pano de fundo uma narrativa que envolve a descrição de vários cômodos de um edifício que tem sua fachada “retirada”. Assim, as histórias se constroem a partir das ligações inesperadas entre os moradores de tal edifício. Nada mais propício para começar um texto sobre a quarentena ou sobre o que podemos escrever enquanto estamos passando por ela. Se levarmos em conta a predileção de Perec pelas listas e o tema do seu mais famoso romance, já temos o ponto de partida para a primeira “tarefa” de nossa lista.
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Escrever a partir de sua janela, descrevendo cômodos visíveis de prédios ou casas que estão dentro do seu horizonte de visão. Vale lembrar que a ficção de Perec não partiu de uma descrição real, mas de movimentos do jogo de xadrez num tabuleiro que foram incorporados e associados aos cômodos que ia descrevendo e narrando. Assim, nossa descrição pode ser a partir da janela, mas talvez a janela seja apenas um ponto de partida. O que não vemos, nas outras casas, pode nos render exercícios de imaginação bastante produtivos!
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Podemos também nos imaginar numa viagem de um navio cargueiro, pensando em todas as peripécias e situações inusitadas vividas nesse longo percurso. Dessa forma Perec viajou da França até os Estados Unidos, na década de 1980, para produzir seu documentário “Récits D’Ellis Island”, com seu parceiro cineasta Robert Bober, com destino a uma ilha que recebeu milhares de emigrantes europeus no começo do século 20. Será que sobreviveríamos a situações adversas como essa? Ou imaginar que estamos em um navio nos ajudaria a aceitar melhor o isolamento? Hipóteses apenas…
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Outro documentário que pode nos inspirar na mesma direção de “A Vida: Modo de Usar” é “La Vie Filmée des Français”, programa exibido na televisão francesa que consistiu na compilação de diversas produções de vídeo caseiras, que mostram cenas do cotidiano da década de 1930, narradas por Perec. O escritor criou um texto onde criava hipóteses para as histórias que via, mesmo sem conhecer nenhuma das pessoas que apareciam em tais vídeos. Assim, podemos partir de situações do nosso cotidiano (vendo filmes, notícias e histórias anônimas) para pensar na criação de narrativas hipotéticas. Não conhecemos as pessoas, e isso nos deixa livre para escrever sobre elas.
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Agora, imagine-se num cruzamento bem famoso (pensei na Ipiranga com a São João) e tente vislumbrar tudo que aconteceria num dia bem movimentado nesse lugar. Perec escolheu um cruzamento em 1978 em Paris para narrar, de dentro de uma van, tudo aquilo que conseguia observar. Usou um gravador na tentativa de conseguir acompanhar a velocidade das ações dos pedestres, carros, ônibus e tudo que aconteceu num período de seis horas consecutivas. Assim nasceu o projeto “Carrefour Mabillon”. Para nós, com um celular na mão, seria fácil observar e gravar. Como não podemos estar fisicamente nesse cruzamento e nem nessa aglomeração, o exercício seria, mais uma vez, de tentar imaginar e descrever a partir de nossas memórias de algum lugar especial.
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Partindo para os espaços mais íntimos, poderíamos nos inspirar na escrita de “Un Homme Qui Dort” para escrever um texto um pouco mais melancólico, mas que acaba sendo muito próximo do que estamos vivendo. Nessa narrativa, o escritor dirige-se a um “tu” a quem ele conta tudo o que se passa. A narrativa descreve as poucas ações da personagem, preso em um cubículo e sem nenhuma vontade de se integrar novamente ao mundo real. É uma espécie de conversa consigo mesmo que, quando lemos, acaba parecendo dirigir-se a nós, leitores. Sentar-se e escrever para alguém solitário, nesse momento, pode ser uma forma de externalizar nossos sentimentos mais profundos, aqueles que só conosco mesmos seremos capazes de dividir.
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Outro projeto bastante famoso de Perec chama-se “Tentativa de esgotamento de um lugar parisiense”, que também estabelece importante relação com o projeto Carrefour Mabillon, mas acontece em um café, onde descreve detalhadamente, durante três dias, tudo o que é capaz de observar. No nosso caso, teríamos que nos imaginar no nosso café ou restaurante preferidos e a partir daí começar nossa escrita, com todo o cenário partindo de nossa imaginação.
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Ainda no espaço íntimo, Perec escreveu uma série de textos em seu livro de ensaios “Espèces D’espaces”, sendo um deles “Le lit”, (A cama) ou a cama, no qual explica seu processo de criação e como muitas vezes ele acontece enquanto ele está lá, deitado. Ou na série de textos “Lieux où J’ai Dormi” (Lugares Onde Dormi), compilação de todos os quartos de hotel onde já dormiu, detalhando a mobília e tudo que considera importante sobre tais lugares. Seria um exercício interessante, lembrar e anotar nossos quartos e nossas viagens pré-pandemia…
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Outra tentativa de projeto (não acabado) de Perec é o “L’herbier des Villes” (Hérbario das Cidades), que consiste na coleção de vários documentos coletados na cidade para compor um dossiê que seria usado futuramente, uma espécie de relicário de memórias a partir de tickets de metrô, panfletos e todos os documentos que ele considerou importantes para a posteridade. Vale lembrar que Perec era também entusiasta do olhar para o cotidiano pensando naquilo que era desimportante, banal, e exatamente por isso essas pequenas “migalhas” de lembranças seriam formadas por esses documentos. Como formar nosso pequeno “herbário” de memórias da cidade? O que recolhemos de nossa vida inteira e que está nas nossas gavetas ou caixas, aguardando alguma organização?
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Falando em organização, o texto “Penser/classer” (Pensar/classificar) trata da organização e classificação de objetos, por exemplo a disposição deles na mesa de trabalho. Será que conseguimos chegar a esse ponto? A quarentena vai nos tornar, talvez, obsessivos por organização? Haverá tempo e disposição para isso?
Por fim, e não menos importante, Perec escreveu um inventário sobre os alimentos que havia ingerido durante um ano todo, em 1974. Poderíamos aderir a essa prática, para exercitar um pouco a escrita descompromissada e, ao mesmo tempo, talvez controlar um pouco a gula da quarentena… cada um a sua maneira, todos tentando usar a criatividade e seu tempo, como lhe for possível. A literatura, entretanto, estará presente mesmo que indiretamente, nas pequenas coisas, como nos exemplos mencionados aqui. O cotidiano está repleto de inspiração para nossa escrita. Vamos começar a escrever, então?