Sobre uma pandemia e a humanidade que nos restou

Sobre uma pandemia e a humanidade que nos restou

Fiquei meses sem escrever para a Bula. Já tinha escrito sobre relacionamentos amorosos, família, maternidade, liberdade, cães e gatos, amizade e todo tipo de sensação que me afligia; porém, as palavras sumiram. Parecia que o assunto estava esgotado; a inspiração, evaporado. Então, um dia, apareceu uma pandemia que embaralhou meus sentimentos e me jogou contra a parede da realidade: ou você escreve, ou você sufoca.

Escrever é terapêutico. Palavras abrem caminhos e acedem luzes. O distanciamento social tem inundado minha cabeça de ideias. Tento organizá-las. Deixo-as entrar. Podem vir, me guiem. Me levem às lembranças do passado e dos dias anteriores — e olha que alguns dias nem estão tão distantes assim.

Escrevo em minha memória aqueles dias recheados de risadas, com o tilintar das taças e o cheiro do pão vindo da cozinha. Lembro daqueles dias com as crianças correndo pela casa enquanto os adultos comemoravam algum acontecimento. Dos dias em que as vozes se confundiam ao quererem falar todas ao mesmo tempo. As palavras que escrevo acabam de me levar àquele passeio por Goiás Velho, em que batíamos às portas das casas para comprar pastelinhos.

Falando em escrever, enviei meu texto anterior (aquele sobre esperança) para um grupo de amigas da época da residência de endocrinologia. Disse que queria compartilhar aquele sentimento por perceber que muitas delas, por meio de seus desabafos escritos no nosso Whatsapp, estavam se sentindo como eu, perdidas na pandemia. E, para aquecer meu coração, recebi de volta: “Sinta meu abraço virtual. Aquele bem grande! Abraço de amiga! Aquele mesmo que não espera nada em troca. Que mata a saudade! Que compartilha da dor. Aquele abraço que quer proteger mesmo. Um beijo bem grandão assim olha rsrsrs para você”.

A tecnologia tornou possível amenizar a ausência, e ela nunca foi tão importante como nesse momento em que estamos vivendo. Telemedicina; home office; aulas, missas e cultos online; compras virtuais; lives. Tudo isso e muito mais, de um jeito urgente (algumas vezes, desajeitado) invadiram as nossas vidas. Estamos conectados virtualmente como nunca estivemos antes. 

Mas, e depois da pandemia, como será a influência da vida virtual em nossas rotinas? Espero que saibamos diferenciar o que é necessário do que é desejável. Eu preciso da tecnologia, mas prefiro as pessoas. Tenho pensado muito nisso: adoro receber os vídeos dos meus sobrinhos fazendo bagunça ou cantando a música que acabaram de aprender, mas não vejo a hora de pegá-los no colo e enchê-los de beijos!

Termino essa crônica tentando deixar registrada a minha saudade. Mas, também, quero que ela me lembre, lá na frente, de todas as pessoas que desejo reencontrar. Porque amigos não deveriam ficar muito tempo sem viajar juntos. Irmãos não deveriam estar tão longe uns dos outros. Nem pais e filhos, ou avós e netos.

Um dia, apareceu uma pandemia que embaralhou meus sentimentos. Não tenho mais certeza de muita coisa. Prefiro pensar que essa loucura veio para dar um novo sentido às nossas vidas, ensinando-nos a reconhecer a humanidade que nos resta. Por isso, depois que tudo passar, façamos mais do que o uso escrito das palavras em sites, blogs e aplicativos. Vamos torná-las reais, como aquele “abraço que quer proteger e o beijo bem grandão” que recebi virtualmente. Quero sentir toda ternura na minha pele, e não somente imaginá-la.

Fotografia: Mohamed Hassan

Rebeca Bedone

é médica.