Fotografia: Divulgação/Marcio Almeida/Reprodução R7
Fui enviado pelo meu opulento editor ao Rio de Janeiro, para ver se me infectava, de uma vez por todas, pelo Covid-19, mas, deu ruim. Cá estou, saudável como um coco. Desde o início da pandemia, ele se declarava cético, dizendo-se contrário ao achatamento da curva de contágio do Ministro Mandetta. Como eu não podia achatar o seu nariz com um soco e engrossar a leva de milhões de desempregados, meti a viola no saco e bati o polegar até chegar à Cidade Maravilhosa. Por causa de sérias restrições orçamentárias, fui alocado num apartamento velho, depauperado, repleto de moradores velhos e depauperados. Não sei se vocês sabem, mas, Copacabana é um dos bairros que mais tem moradores idosos no planeta, constituindo o maior contingente de artrose e esquecimento de fatos por metro quadrado.
Após várias tentativas fracassadas para me contaminar com o vírus, fui tomar o café da manhã numa padaria na Gávea. Por que andar tão longe para fazer o desjejum? A busca pela inspiração. A fome de escrever faz um sujeito se virar. Peguei um ônibus e lá estava eu na padaria. Por causa da quarentena, tinha pouca gente na rua. Estávamos em fila indiana, mantendo os regulamentares um metro e meio de distância entre nós. Logo à minha frente, tinha um sujeito alto, de cabelos anelados do tipo macarrão instantâneo, quepe na cabeça, usando óculos com lentes fundo-de-garrafa e um bigode tingido de vermelho. Reconheci, na hora, que era, ninguém mais, ninguém menos, do que o próprio Moraes Moreira, famoso cantor e compositor baiano, fundador dos Novos Baianos. Paralisei.
Eu sequer imaginava que o Moraes morasse no Rio. Fiquei na sua cola. Exigências sanitárias não permitiam aos clientes tomar o café da manhã dentro do estabelecimento. Uma vez na calçada, com a intrepidez de um selvagem, acelerei o passo e perguntei “Desculpe. O senhor é o Moraes Moreira, certo?”. Ele assentiu com a cabeça, demonstrando pouca empolgação com a minha abordagem, tão cedo no dia. Eu expliquei que era um ser enviado pela Revista Bula para cobrir a pandemia no Rio e que seria maravilhoso, uma honra para mim, se ele me concedesse uma entrevista, enquanto caminhávamos até o apartamento, onde ele morava sozinho.
Notei que ele não ficou tão impressionado, mas, mesmo assim, bom baiano que era, concordou em responder algumas perguntas, desde que fosse coisa rápida e que eu cobrisse o rosto com a máscara. Afinal de contas, ele tinha 72, pertencia ao grupo de risco para a doença. Enfiei o saco de pães no sovaco e fui registrando toda a nossa conversa na retina. Para a minha surpresa e alegria, ele respondia a tudo cantando. Enquanto descíamos a ladeira, mordiscávamos deliciosos acarajés “Not Made In Bahia”. Uma conversa deliciosa e surreal.
Bula — Como está a situação do Coronavírus no Rio?
Moraes Moreira — Preta, pretinha. (risos)
Bula — Como você lida com a quarentena forçada?
Moraes Moreira — Sempre cantando. Até três da manhã. Estive ouvindo Stevie Wonder.
Bula — Parece que as pessoas não estão levando muito a sério a questão do isolamento social…
Moraes Moreira — Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor. Quarentena! De noite e de dia.
Bula — O que você acha do comportamento negacionista do presidente da república em relação à pandemia?
Moraes Moreira — Indagações de um analfabeto. Loucura pouca é bobagem. Lá vem o Brasil descendo a ladeira.
Bula — Humm… Esse Acarajé tá uma delícia…
Moraes Moreira — Bateu no paladar? Agradeça ao Pelô.
Bula — Eita! Pingou óleo na minha camisa…
Moraes Moreia — Mancha de dendê não sai.
Bula — Deve ser praga do meu editor. Ele é uma besta.
Moraes Moreira — Que papo é esse? Besta é tu (risos).
Bula — Muita gente acredita que o vírus foi criado em laboratório, como estratégia de guerra biológica.
Moraes Moreira — Mistério do planeta. Só Deus é quem sabe.
Bula — Do que você mais sente falta no isolamento?
Moraes Moreira — Tapioca de Olinda. O bandolim do Jacob. Guitarra baiana. Festa do interior. Saudades do Galinho. As três meninas do Brasil. Forró do ABC.
Bula — Antes do advento da internet, como vocês, compositores, faziam para compor, para trocar as letras das músicas? Por cartas?
Moraes Moreira — Pombo correio.
Bula – A alegria é marca registrada da sua obra. Quando toca Moraes Moreira…
Moraes Moreira — …a menina dança (risos)
Bula — Você fez história no carnaval baiano. Foi o primeiro artista a cantar em cima de um trio elétrico. Como se explica essa paixão pela folia?
Moraes Moreira — Pelas capitais, no chão da praça, eu sou o carnaval. É Dodô no céu e Osmar na terra. Eu gosto de ser baiano. (risos)
Bula — O que a música representa para você?
Moraes Moreira — Vida, vida. Essa coisa acesa.
Bula — Chegamos. Foi um prazer tê-lo conhecido, Moraes.
Moraes Moreira — Parou por quê? Por que parou? (risos)
Bula — Te agradeço imensamente por ter cantado as respostas pra mim. Parece até que a gente já se conhecia de outros carnavais. Que sensação estranha e boa. Não sei como explicar.
Moraes Moreira — Sintonia.
Bula — Só pode ser. Dá até vontade de chorar…
Moraes Moreira — Acabou chorare. Palavra de poeta.
Bula — Pode deixar uma mensagem final para os seus fãs?
Moraes Moreira — Sem perdão, a vida é triste solidão.