No final da temporada da Fórmula 1 de 1987, os horizontes brasileiros estavam a cintilar. Nelson Piquet foi o grande campeão do ano, com a sua Williams Honda, e o terceiro colocado havia sido Ayrton Senna, com sua lendária Lottus. Porém, de mudança para a McLaren e em busca de um novo patamar na carreira, Senna desapareceu da mídia no intervalo que se compreende entre o final de um campeonato e o início do outro. Em seu retorno, explicou o ocorrido: havia sumido para ver se Piquet “aparecia”, pois não fazia sentido o compatriota ser tricampeão e ser ele sempre o centro dos holofotes. Ironia sennística da mais fina. O arquétipo de um ser humano desafiador e destemido por natureza, mas bem distante da imagem de santo cristalizada nos dias atuais.
O questionamento inicial é inevitável: por qual motivo Ayrton Senna é tão aclamado e venerado, tendo o mesmo número de títulos de Nelson Piquet? O começo de uma possível explicação talvez possa vir das palavras do próprio Ayrton. Segundo ele, em entrevista ao programa “Roda Viva” à época, Nelson vivia no exterior e, apesar de carregar as cores do Brasil, não vivia a realidade do país. Essa resposta simplista, questionando o amor de Piquet ao seu próprio país, demonstra a maneira que Senna incorporava a alma da população. Não bastava ganhar; deveria vencer e exaltar as suas cores de origem.
Surge, então, o foco do debate. Ayrton Senna não era um piloto de origem humilde que lutou contra injustiças e venceu na vida. Dificilmente haverá uma história dessas no cenário da Fórmula 1. Mas a sua obstinação, seu jeito simples e, principalmente, o seu tino para lidar com a mídia eram fundamentais para a identificação do brasileiro médio com os seus feitos. Perceba-se que, até o início de 1988, Senna não era campeão ainda, Piquet já possuía três títulos e Emerson Fittipaldi era bicampeão. Porém, no imaginário nacional, o herói era Senna. O escolhido do povo.
Nesse sentido, a questão gira em torno da áurea construída pelo próprio Ayrton. O intuito era vencer. Não importava se em uma temporada avassaladora, como em 1991, ou se em um final de título controversa, como em 1990 — uma amostra de seu instinto vingativo que não titubeava em tirar um rival das pistas. A construção mitológica do que hoje conhecemos sobre Ayrton foi desenvolvida por ele próprio com ajuda da Rede Globo. Cada entrevista emblemática, a simbiose com a bandeira nacional e as atitudes beirando o heroísmo não eram de todo natural. Ele sabia onde queria chegar.
A temporada de 1993, cujo desfecho era antevisto antes mesmo de seu início, é por muitos considerada como a sua melhor. No braço, com motor e carros que não correspondiam, pode-se dizer que Ayrton correu mais do que seu próprio equipamento MP4/8-Ford. Alcançou sete vitórias e um incrível vice-campeonato à frente do outro piloto da imbatível Williams. E é essa a questão com Senna: ele buscava o brilho em condições adversas, com menos carro, voando na chuva, contra os comandantes da Fórmula 1 ou sua própria segurança. É a tal mística que martela no coração dos brasileiros. Qualquer outra vicissitude não retira o mérito de seu brilho.
A diferença com Piquet parece mais simples do que se possa imaginar: Nelson não se importava com o seu personagem. Era tão competitivo quanto Ayrton, com a genialidade nas pistas tão inigualável quanto qualquer outro gigante, mas que não tinha a mesma pressa em alcançar as coisas. Segundo o próprio Piquet, deveria haver um respeito aos passos na modalidade e Ayrton se achava predestinado a ser o melhor de todos. Senna tinha a pressa e queria tudo antes do seu tempo. Eram duas pessoas diferentes, com gostos distintos e objetivos pouco semelhantes. Piquet almejava apenas ser campeão do mundo. De comum, a curva Tamburello, motivo de um acidente que fez Piquet perder boa parte da profundidade da visão em 1987 e tirou a vida de Ayrton em 1994. Senna queria conquistar não apenas as pistas, mas um lugar como herói no coração do povo brasileiro. No final das contas, ambos lograram êxitos em seus focos de vida. E com muitos louvores.
Fotografia: Instituto Ayrton Senna / Wikimedia Commons