O que está ruim sempre pode piorar. Ao que parece, a carência de talento (e de vergonha na cara) no mundo da música não tem limites. O cúmulo da falta de respeito próprio ainda é um horizonte infindo ante a obsessão humana de ganhar dinheiro e fama
Há exatamente um ano, em setembro de 2013, escrevi uma crítica ao fenômeno do “twerk” na música pop dos Estados Unidos. A palavra “twerk” remetia a uma dança sensual, por meio da qual a mulher balançava suas nádegas diante do parceiro, excitando-o com seus quadris. A descrição não continha nenhuma novidade para o público brasileiro, especialmente aquele que cresceu (ou sobreviveu) à sombra da ascensão da axé music na década de 1990, já habituado a assistir ao rito de supremo mau gosto que fez com que dezenas de mulheres requebrassem ao som de hits como a “Dança da Bumbum” e similares. Grupos genéricos, formados por cantores picaretas, entoavam verdadeiros hinos às nádegas. Arranjos instrumentais paupérrimos instigavam dançarinas sem rosto a requebrarem loucamente em cima do palco. Naquela “era do terror auditivo” as coreografias duma dança voluptuosa embalavam a incipiente decadência da música pop brasileira — que, anos depois, desceria ladeira abaixo definitivamente com o sertanejo universitário.
Pois bem. Em 2013, época em que publiquei minha crítica, a imprensa dos Estados Unidos mostrou-se profundamente escandalizada com a performance da cantora Miley Cyrus no evento “Video Music Awards” daquele ano. Organizado pela emissora MTV, Cyrus, ao lado do cantor Robin Thicke, protagonizou momentos de supremo constrangimento, quando decidiu rebolar suas nádegas esquálidas sensualmente. Para a audiência estadunidense, foi chocante ver uma garota de apenas 21 anos de idade, outrora conhecida estrela de programas infantis, trajar microroupas coladíssimas, a fim de requebrar apelativamente com o claro propósito de simular o ato sexual. Nada disso, todavia, era novidade para indústria fonográfica do Brasil, que durante anos explorou a rentabilidade que o movimento da axé music, de triste memória, liderou. Aos olhos do público brasileiro, o “twerk” de Miley Cyrus, que tanto escandalizou a sociedade dos Estados Unidos, não passava da repetição tardia de uma decadência humana que, muitos anos antes, já havia se instalado (e consolidado, vide o funk carioca) por aqui. Por isso, no meu texto crítico, comparei Cyrus a Carla Perez — a dançarina baiana que tanto dinheiro fez no auge da axé music e se tornou símbolo-mor do mau gosto, ícone daquilo que designo como a “década perdida” da música pop brasileira, isto é, os anos de 1990.
Eis que agora sou surpreendido pelo lançamento do videoclipe da música “Booty” e vejo-me obrigado a revisitar minhas ideias. Até então, eu cria sinceramente que Cyrus havia assumido o posto de “rainha do bumbum” nos Estados Unidos, e que o escandaloso videoclipe de “Wrecking Ball” representava o ápice do mau gosto numa carreira de pseudoartista. Ledo engano. O que está ruim sempre pode piorar. Ao que parece, a carência de talento (e de vergonha na cara) no mundo da música não tem limites. O cúmulo da falta de respeito próprio ainda é um horizonte infindo ante a obsessão humana de ganhar dinheiro e fama.
Em “Booty”, a cantora Jennifer Lopez se une à Iggy Azalea para desafiar Cyrus quanto ao título de “rainha do bumbum” americana. Quem tiver a pachorra de assistir ao show de horrores, experimentará os quatro minutos e dezesseis segundos mais constrangedores da sua vida. Após uma contagem regressiva inicial, a anunciar deliberadamente o escândalo que está por vir, o diretor do videoclipe centra sua filmagem na única coisa que importa ali: nádegas femininas rebolando loucamente. É assim que Lopez e Azalea são destacadas. E é só isso que o espectador verá, já que nem mesmo as expressões faciais das cantoras são respeitadas. Tudo o que interessa são os closes ginecológicos, bem ao gosto da axé music baiana dos anos 1990. Em algumas cenas, Jennifer Lopez faz questão de ficar de quatro e rebolar seu corpo atlético. Ao fundo, vemos uma iluminação amarela forte, que, muito longe de explicitar o sex appeal latino, só nos remete à ideia de um pornôsoftcore cafona. Eis então na tela o desfile do “pornô pop” mais apelativo: corpos molhados, bundas rebolando em maiôs justíssimos, propositalmente escolhidos para excitar a audiência, mais e mais cenas de Lopez em posições de caráter sexual. Nem a indústria pornográfica mais depauperada teria sido capaz de conceber algo tão baixo, tão ignóbil, tão ultrajante.
Esse padrão escandaloso da indústria fonográfica dos Estados Unidos tem o único propósito de disfarçar o indisfarçável: a mais absoluta falta de talento dessas celebridades pseudocantoras. Figuras desprovidas da mínima sensibilidade musical, sem compreensão do que uma carreira artística digna deve oferecer, elas não se importam em tratar seu público como cachorros no cio e passam a se valer de toda sorte de subterfúgios que não os oriundos do genuíno talento musical. Ou será que ficar de quatro e rebolar num videoclipe é digno da admiração de alguém? Tal habilidade pode até se prestar a aumentar o cachê num outro campo da atividade humana (uma atividade bem antiga, por sinal), mas, certamente, não serve como referência da qualidade artística duma “cantora”.
É evidente que em “Booty” a música está em segundo plano. Tudo é mais importante que a melodia, até por que ela não existe. O que se ouve é um arranjo instrumental que parece ter sido elaborado num estúdio capenga por um técnico de som dos mais incompetentes. É impossível fazer um cover desse hit do “pornô pop”, pois não há padrões sonoros minimamente audíveis para emular. Completa o pacote uma letra tosca, um apanhado de ruminações em inglês que remetem a coisas como pistas de dança, homens que se deve pegar, garotas sexy — tudo no melhor estilo das letras desprezíveis que são cantadas pela rainha da cafonice moderna, a neochacrete Beyoncé. Em “Booty” existe tudo, menos o mais importante: a música.
Do ponto de vista sociológico, talvez um estudioso ainda pudesse identificar em videoclipes desse nível a continuidade de uma lógica cultural machista. Vende-se o corpo da mulher como objeto de consumo, um bem descartável. Coloca-se uma loira e uma morena para rebolar em maiôs coladíssimos, em trajes mínimos, como que a noticiar que a mulher venal abrange todas as etnias. Em closes ginecológicos, filma-se unicamente o corpo, a nádega sobrepõe-se ao rosto. Assim, é fácil perceber que em representações imagéticas desse tipo a mulher não é concebida em sua inteireza (qual um ser digno de respeito como qualquer outro), senão como um mero pedaço de carne, que é servido num prato para o gozo masculino, para o deleite lascivo dos olhos por um público cada vez mais imbecilizado e ávido pela sexualização generalizada da arte.
Mas o caráter machista dessa guinada da música pop dos Estados Unidos segue apenas o estatuto servil de uma decadência cultural generalizada. A axé music chegou bem antes ao Brasil, é verdade (viva o nosso pioneirismo!), mas seus efeitos vergonhosos só agora começam a se espalhar pelo mundo. Do “twerk” de Miley Cyrus ao “booty” de Jennifer Lopez, é possível reconhecer a degenerescência paulatina da indústria musical, que se encaminha para o poço sem fundo da falta de talento e de respeito próprio. Nesse sentido, o choque experimentado pela sociedade estadunidense, frente a esse movimento do “pornô pop”, só tende a piorar diante de uma audiência de ouvintes ignorantes, que não se envergonham em assumir a condição de fã de celebridades vazias, picaretas, autênticos estelionatários do show business.
No atual cenário da indústria do entretenimento, no qual impera o mau gosto e a falta de respeito próprio, a música perdeu seu protagonismo. E arrisco-me a dizer: a continuarmos assim, no futuro, as pessoas irão aos conservatórios não para aprender a tocar um instrumento musical, mas sim para serem instruídas na “arte” de rebolar.