Sim, escolhi falar de Enclausurado nessa semana porque é assim que nos sentimos. Conservadas as proporções e contextos, estamos como o narrador: presos em ambientes que parecem diminuir, observando a catástrofe lá fora acontecer e sem ter muito o que fazer além de esperar e, com sorte, nos embriagar.
A proposta de “Enclausurado” é seu ponto forte: uma história de conflitos amorosos, crime e investigação narrada por um feto filosófico e sarcástico. Obviamente o feto gestado por Ian McEwan não é um ser comum. No ventre de sua mãe ele captura informações com a maturidade de um humano apto a viver imediatamente. Ele pondera sua relação com a genitora e se vê obrigado a ser testemunha incondicional do mundo mesquinho e ambíguo que lhe é apresentado. Esbanjando um humor refinado, o feto descreve lindamente os vinhos que degusta por meio da mãe e reflete sobre a vida e o futuro.
Essa narrativa primorosa e envolvente aborda a complexidade dos comportamentos humanos, enquanto nos brinda com momentos de alívio cômico. Dá pra sentir a angústia de cada momento, cada parágrafo, cada diálogo. E assim, sem precisar dizer com todas as letras, o personagem escancara nossa própria clausura.
Ian McEwan
2016
Editora: Companhia das Letras
Tradução: Jorio Dauster
Foto do autor: Annalena McAfee
Gênero: ficção
200 páginas
Ian McEwan é considerado um dos grandes nomes da ficção britânica contemporânea. Seu primeiro livro, “First Love, Last Rites” (1975), ganhou o prêmio Somerset Maugham. É conhecido pela inventividade com as palavras e pelo gosto de usar a mecânica dos thrillers como crítica social. Ao longo de sua carreira foi indicado várias vezes ao Booker Prize, o mais prestigiado prêmio literário britânico, o que veio ocorrer em 1998 com o livro Amsterdam. Sua obra é famosa pelo realismo psicológico, com rigor de detalhes e clima ameaçador, explorando com frequência temas complexos como escolha ética, decisões difíceis e circunstâncias extraordinárias.
Então aqui estou, de cabeça para baixo, dentro de uma mulher. Braços cruzados pacientemente, esperando, esperando e me perguntando dentro de quem estou, o que me aguarda. Meus olhos se fecham com nostalgia quando lembro como vaguei antes em meu diáfano invólucro corporal, como flutuei sonhadoramente na bolha de meus pensamentos num oceano particular, dando cambalhotas em câmera lenta, colidindo de leve contra os limites transparentes do meu local de confinamento, a membrana que vibrava, embora as abafasse, com as confidências dos conspiradores engajados numa empreitada maléfica. Isso foi na minha juventude despreocupada. Agora, em posição totalmente invertida, sem um centímetro de espaço para mim, joelhos apertados contra a barriga, meus pensamentos e minha cabeça estão de todo ocupados. Não tenho escolha, meu ouvido está pressionado noite e dia contra as paredes onde o sangue circula. Escuto, tomo notas mentais, estou inquieto. Ouço conversas na cama 10 sobre intenções letais e me sinto aterrorizado com o que me aguarda, pela encrenca em que posso me meter.
Estou mergulhado em abstrações, e só as crescentes relações entre elas criam a ilusão de um mundo conhecido. Quando ouço a palavra “azul”, que nunca vi, imagino um tipo de acontecimento mental muito próximo de “verde” — que também nunca vi. Considero‑me um inocente, descomprometido com lealdades e obrigações, um espírito livre, apesar do pouco espaço de que disponho. Ninguém para me contradizer ou repreender, sem nome nem endereço anterior, sem religião, sem dívidas, sem inimigos. Minha agenda, se existisse, registraria apenas meu futuro dia de nascimento. Sou, ou era, apesar do que dizem agora os geneticistas, uma lousa em branco. Mas uma lousa porosa e escorregadia, inútil para ser usada numa sala de aula ou no telhado de uma cabana, uma lousa que escreve por si mesma à medida que cresce a cada dia e se torna menos branca. Considero‑me um inocente, mas tudo indica que participo de uma conspiração. Minha mãe, abençoado seja seu incansável e barulhento coração, parece estar envolvida.
Parece, Mãe? Não, está de fato. Você está. Está envolvida. Sei desde o meu começo. Deixe que eu o evoque, aquele momento de criação que chegou com meu primeiro pensamento. Faz muito tempo, muitas semanas atrás, meu circuito neural se fechou e se transformou em minha espinha, e meus muitos milhões de jovens neurônios, tão ativos quanto bichos de seda, fiaram e teceram, a partir de seus axônios em forma de cauda, o lindo tecido dourado da minha primeira ideia, uma noção tão simples que agora em parte me escapa. Era eu? Autoadmiração excessiva. Era agora? Dramática demais. Ou algo 11 que antecedia ambas, continha ambas, uma só palavra acompanhada de um suspiro ou de um apagão mental de aceitação, de puramente ser, algo como — isto? Muito pedante. Por isso, chegando mais perto, minha ideia foi Ser. Ou, se não isso, sua variante gramatical, é. Esse foi meu conceito original, que tem na essência é. Apenas isso. Correspondendo a Es muss sein. O início da vida consciente foi o final da ilusão, a ilusão de não ser, e a erupção do real. O triunfo do realismo sobre a mágica, do é sobre o parece. Minha mãe está envolvida numa conspiração e, consequentemente, eu também estou, mesmo se meu papel consistir em fazê‑la fracassar. Ou, como um tolo relutante, se me demorar demais aqui, então o de ir à forra.
Mas não me queixo diante da boa fortuna. Eu sabia desde o início, ao desembrulhar de seu tecido dourado meu presente de consciência, que poderia ter chegado a um lugar pior e em momento bem pior. Os elementos gerais já são claros, fazendo com que meus problemas domésticos sejam, ou devessem ser, insignificantes. Há muito que comemorar. Herdarei condições modernas (higiene, férias, anestésicos, lâmpadas de leitura, laranjas no inverno) e habitarei um canto privilegiado do planeta — a Europa Ocidental, bem alimentada e livre de pragas. A Velha Europa, esclerosada, relativamente bondosa, atormentada por seus fantasmas, vulnerável aos agressores, insegura de si mesma, destino preferido de milhões de infelizes. Minha vizinhança não será a próspera Noruega — minha primeira escolha por causa de seu gigantesco fundo soberano e generoso sistema de amparo social; nem minha segunda, a Itália, por causa da culinária local e da decadência ensolarada; nem mesmo minha terceira, a França, devido a seu pinot noir e jovial amor‑próprio. Em vez disso, herdarei 12 um reino em nada unido governado por uma rainha idosa e reverenciada, onde um príncipe que é também um homem de negócios, famoso por suas boas ações, seus elixires (essência de couve‑flor para purificar o sangue) e intromissões inconstitucionais, aguarda com impaciência a coroa. Esse será meu lar, e vai dar para o gasto. Eu poderia ter vindo ao mundo na Coreia do Norte, onde a sucessão também é garantida, mas onde faltam liberdade e alimentos.
Como é que eu, nem mesmo jovem, nem mesmo nascido ontem, posso saber tanto ou saber o suficiente para estar errado sobre tantas coisas? Tenho minhas fontes, eu escuto. Minha mãe, Trudy, quando não está com seu amigo Claude, gosta de ouvir rádio e prefere programas de entrevistas a música. Quem, com o surgimento da internet, teria previsto o crescimento continuado do rádio ou o renascimento daquela expressão arcaica, “sem fio”? Acima da barulheira de máquina de lavar roupa que fazem estômago e intestinos, acompanho as notícias, origem de todos os pesadelos. Movido por uma compulsão que me faz mal, ouço com atenção as análises e os debates. As repetições de hora em hora e os resumos regulares a cada meia hora não me aborrecem. Tolero até o Serviço Mundial da BBC e as fanfarras pueris de clarins eletrônicos e xilofone que separam cada notícia. No meio de uma noite longa e serena, posso sapecar um bom pontapé em minha mãe. Ela acorda, perde o sono, liga o rádio. Uma maldade, eu sei, mas estamos os dois bem informados de manhã.
E ela gosta de áudios de palestras e livros de autoajuda — Conheça seu vinho em quinze partes —, biografias de dramaturgos do século XVII e de várias obras clássicas. O Ulisses de James Joyce a faz dormir, enquanto a mim entusiasma. Quando, nos 13 primeiros dias, ela punha os fones de ouvido, eu ouvia claramente devido à eficiência com que as ondas sonoras viajam através do maxilar e da clavícula, descendo pela estrutura óssea e atravessando velozmente o nutritivo líquido amniótico. Até mesmo a televisão transmite a maior parte de sua escassa utilidade por meio de sons. Além disso, quando minha mãe e Claude se encontram, eles às vezes discutem a situação do mundo, em geral em tom de lamentação, embora planejem torná‑lo ainda pior. Alojado onde estou, sem nada para fazer a não ser crescer meu corpo e minha mente, absorvo tudo, até mesmo as idiotices — que é o que não falta.
Porque Claude é um homem que gosta de se repetir. Um homem de reiterações. Ao apertar a mão de um desconheci‑ do — ouvi isto duas vezes —, ele dirá: “Claude, como o De‑ bussy”. Não podia estar mais errado. Esse é Claude, um incorporador de imóveis que não compõe nada, que não inventa nada. Ele aprecia uma ideia, a enuncia em voz alta, depois a repete e — por que não? — a enuncia mais uma vez. Fazer o ar vibrar uma segunda vez com seu pensamento é parte inseparável de seu prazer. Ele sabe que você sabe que ele está se repetindo. O que ele não sabe é que você não aprecia isso tanto quanto ele. Aprendi numa palestra da série Reith que isso se chama uma questão de referência.
Aqui está um exemplo tanto dos discursos de Claude e de como coleto informações. Ele e minha mãe combinaram por telefone (ouço as duas partes) se encontrarem à noite. Não me levando em consideração, como de hábito — um jantar à luz de velas para dois. Como sei sobre a iluminação? Porque, ao serem levados a seus lugares, ouço minha mãe reclamar que as velas estão acesas em todas as mesas menos na deles.
Segue‑se um arquejo irritado de Claude, um estalar imperioso de dedos secos, uma espécie de murmúrio obsequioso, assim imagino, de um garçom curvado sobre a mesa, o raspar de um isqueiro sendo aceso. É o que eles desejam, um jantar à luz de velas. Só falta a comida. Mas eles têm no colo os pesados cardápios — sinto a borda inferior do cardápio de Trudy pressionando a parte de baixo de minhas costas. Agora sou obrigado a ouvir mais uma vez a dissertação de Claude sobre itens do menu, como se ele fosse a primeira pessoa a notar aqueles absurdos insignificantes. Demora‑se nos comentários sobre “fritado na frigideira”. De que serve a menção a frigideira senão para tapear o cliente sobre o fato de que se trata de uma corriqueira e pouco salutar fritura? Onde mais seria possível preparar vieiras com pimenta e suco de limão? Num timer de cozinha? Antes de seguir adiante, ele repete isso com variações de ênfase. Depois, seu outro item predileto, uma importação americana, “cortada à faca”. Começo a recitar silenciosamente seus comentários antes mesmo que ele os faça, quando uma ligeira alteração em minha orientação vertical me diz que minha mãe está se inclinando para a frente a fim de pousar um dedo sobre o pulso dele e fazê‑lo parar, enquanto, com voz doce, pede: “Escolha o vinho, querido. Um magnífico”.
Gosto de compartilhar uma taça com minha mãe. Você talvez nunca tenha experimentado, ou já terá esquecido, um bom Borgonha (o preferido dela) ou um bom Sancerre (também seu preferido) decantado através de uma placenta saudável. Antes mesmo que o vinho chegue — nessa noite um Jean‑Max Roger Sancerre —, ao som da rolha ser retirada eu o sinto no rosto como a carícia de uma brisa de verão. Sei que o álcool reduzirá minha inteligência. Reduz a inteligência de todo mundo. Mas, ah, um pinot noir alegre e rosado ou um Sauvignon com toques de groselha me fazem dar saltos e cambalhotas em meu mar secreto, ricocheteando nas paredes de meu castelo, desse castelo elástico que é meu lar. Ou assim era quando eu tinha mais espaço. Agora usufruo meus prazeres de forma tranquila, e na segunda taça minhas especulações florescem com aquela liberdade chamada poesia. Meus pensamentos se desdobram em bem torneados pentâmetros, com as frases cabendo em cada verso ou transbordando para o verso seguinte a fim de oferecer uma variedade agradável. Mas ela nunca toma uma terceira taça, o que me deixa furioso.
“Preciso pensar no bebê”, ouço‑a dizer enquanto cobre a taça com uma mão puritana. É quando sinto vontade de pegar meu cordão oleoso, como se fosse um cordão de veludo de uma mansão campestre com muitos criados, e puxar com força para ser servido. Vamos lá! Mais uma rodada para os amigos!
Mas não, ela se contém por me amar. E eu a amo — como poderia não amá‑la? A mãe que ainda vou encontrar, que só conheço por dentro. Não basta! Quero ver a parte de fora. As superfícies são tudo. Sei que tem cabelo louro, “cor de palha clara”, que cai em “cachos revoltos” até seus “ombros brancos como a polpa de uma maçã”, porque meu pai leu para ela, na minha presença, um poema dele que dizia isso. Claude também se referiu ao cabelo dela, mas de forma menos engenhosa. Quando ela está disposta, faz tranças bem apertadas em volta da cabeça, segundo meu pai no estilo Yulia Tymoshenko. Também sei que minha mãe tem olhos verdes, que seu nariz “é um botão de madrepérola”, que ela gostaria que ele fosse maior, que os dois homens o adoram do jeito que ele é e que tentaram convencê‑la disso. Ela já escutou muitas vezes que é bonita, mas continua cética, o que lhe confere um poder inocente sobre os homens, como meu pai lhe disse uma tarde na biblioteca. Ela respondeu que, se aquilo era verdade, era um poder que ela jamais buscara e que não desejava ter. Essa foi uma conversa incomum entre eles, e ouvi com muita atenção. Meu pai, que se chama John, disse que, se tivesse tal poder sobre ela ou sobre as mulheres em geral, não se imaginaria abrindo mão dele. Com base no movimento ondular que por um instante afastou meu ouvido da parede, deduzi que ela reagira com um enfático dar de ombros, como se dissesse que os homens eram mesmo diferentes. E daí? Além do mais, ela disse a ele em voz alta, o poder que ela supostamente tinha era apenas o que os homens lhe atribuíam em suas fantasias. Então o telefone tocou, meu pai se afastou para ir atender, e essa conversa rara e interessante sobre as pessoas que têm poder jamais foi retomada.
Mas voltemos à minha mãe, à minha infiel Trudy, cujos braços e seios cor da polpa de maçã e olhos verdes desejo profundamente conhecer, cuja inexplicável necessidade de Claude antecede meu primeiro clarão de consciência, meu primordial ser, e que frequentemente fala com ele, e ele com ela, em sussurros na cama, em sussurros nos restaurantes, em sussurros na cozinha, como se ambos suspeitassem de que úteros têm ouvidos.
Eu costumava pensar que a discrição deles se devia apenas à natural intimidade amorosa. Mas agora tenho certeza. Eles evitam usar suas cordas vocais porque estão planejando um acontecimento tétrico. Se der errado, eu os ouvi dizer, suas vidas estarão arruinadas. Acreditam que, se vão seguir 17 em frente, devem agir depressa, logo. Dizem um ao outro para serem calmos e pacientes, lembram um ao outro do custo que o fracasso do plano representaria, de que há várias etapas, que uma deve estar ligada à anterior, que se uma única falhar todas falharão “como lâmpadas velhas de árvores de Natal” — comparação incompreensível feita por Claude, que raramente diz alguma coisa obscura. O que eles pretendem fazer os repugna e amedronta, e nunca falam da coisa diretamente. Em vez disso, envoltos em sussurros, trocam elipses, eufemismos, aporias, depois dão tossidinhas e mudam de assunto.
Numa noite quente e irrequieta da semana passada, quando achei que os dois dormiam havia muito tempo, minha mãe disse de repente na escuridão, duas horas antes de o sol nascer de acordo com o relógio do escritório de meu pai no andar de baixo, “Não podemos fazer isso”.
E de pronto Claude disse num tom de voz normal: “Podemos”. E depois de um instante de reflexão: “Podemos, sim”.