“Garrincha entrou e o Mané deu novo élan ao quadro”, falou-me Nelson Rodrigues por sua crônica “O homem formidável do Brasil”. A crônica passou, mas a palavra incandesceu em minha alma. “Élan”, ele disse. Repeti: élan, élan, élan. Aquele som atrevido e delicado era exatamente a expressão de seu significado — entusiasmo, ardor, disposição —, mas nenhum de seus sinônimos até então honrara tanto a terra da qual nascera. Do francês, vim a descobrir.
Palavras, hoje noto, têm personalidade. Seu corpo carrega as marcas do espírito que as criou. Tomemos “retumbante” como exemplo. Pode-se usá-la descaradamente sem nunca ter ido ao dicionário. Sua carcaça já retumba como o coração jovem de um cavalo de raça. Onomatopeias têm esse poder: “miar”, “tilintar”, “zunir”. Berrar por si só já é um berro; chiar já chia mesmo que o sujeito não o queira. Elas sabem mesmo quem são.
Há palavras que não merecem o corpo que têm. Carregam a alminha fraca e esfarrapada de um pássaro ferido. Veja a enganosa “lânguido”. Quando a ouvi pela primeira vez, ainda adolescente, quis fazer algo para merecer aquela adjetivação nobre. Mas não é que a coitada só tem boniteza? “Sem vigor”, me disse o dicionário. Como pode uma palavra tão vigorosa significar exatamente o seu oposto? Um abuso, um paradoxo inaceitável! “Pórtico” é outra. Imagino Hércules sendo pórtico, em sua bravia e musculosa resistência. Tão atlética, tão humana, e tão objetificada! “Portal de edifício nobre”. Sério? Portal de edifício? Um desperdício.
Malemolentes (essa molenga!), algumas estão sempre tomando uma cervejinha na laje, com ar de deboche de quem está só começando o fim de semana: “jaca”, “goela”, “sovaco”. Sempre despreocupadas, ao som de um sambinha carioca. Suas vizinhas são responsáveis pela programação divertida: “macambúzio”, “faniquito”, “biboca”. É andar com essa turma e garantir o riso frouxo.
Algumas ganham o coração da gente e criam raízes. “Verve” mora em meu peito e sai para passear, exibida, sempre que posso. “Criatividade que incita o artista, expressividade, vivacidade.” Meu Deus, verve é vida que ferve. É palavra que derrama, preenche, domina o texto inteiro. Quando a vejo, já simpatizo com o escritor. Eu chamaria um filho de Verve. Ao seu lado, repousam proparoxitonamente “âmago” e “ímpeto”. Profundas, quase espirituais, carregam um não sei o quê da cosmologia e do segredo universal.
Palavras têm personalidade, são voluntariosas, não se engane. Emprestam-nos seus corpos, mas os tomam quando querem. É preciso respeitá-las, e amá-las, e conhecê-las. São donzelas e senhoras que nos concedem danças honrosas e melífluas, mas, se irritadas, nos ferem o âmago com retumbantes faniquitos.