Hoje é aniversário de Demiatt. Ela faria 10 anos. Será que preparo um bolo? Será que abro as gavetas, revejo fotografias, cheiro suas roupas? Essa asma anda querendo, mas, não me mata ainda não. Foi Doktor Varela quem me disse que que os piores inimigos de um asmático são invisíveis. Pensei que ele se referia aos meus pensamentos. “Não, minha filha. São os ácaros, criaturinhas microscópicas que infestam os cantos, os cômodos, como os tártaros aos dentes, penetrando pelas tuas vias aéreas superiores e fazendo com que tu te sintas tão inferior quanto o diferencial de um sapo. Abre a janela. Deixa o sol entrar. Esteriliza a tua casa, minha filha.” Ora, então, era só isso? As lembranças são ácaros sufocando a minha mente.
O dia amanheceu mais cinza que o de costume. Sophie colore revistas na sala. Vincent saiu cedo demais. É dia de plantão no Hospital da Providência Humana, onde trabalha como maqueiro, carregando moribundos de um lado para o outro, de cima para baixo, quase sempre acelerando nas retas e debreando nas curvas. Ele diz que não sente compaixão particular pela freguesia. Só não gosta de carregar criança, como fez com Demiatt, pelos braços, no meio da rua. O serviço de maqueiro hospitalar é pesado, repetitivo, pouco reconhecido por quem quer que seja. É como se tocasse um carrinho de compras pelos corredores de um supermercado. Carregar gente viva. Carregar gente morta. Não faz tanta diferença. Mais dias, menos dias, a vida se apaga mesmo.
Entretanto, no íntimo, tínhamos um medo excessivo da morte. Passáramos por ela dentro de casa. Janelas abertas, vocês sabem, são um perigo para a felicidade escapar voando. Vocês deveriam se dar conta disso e ficar mais atentos, sempre que forem bater panelas em protesto ao governo de Mojo Filter. Pensamos em enviar a pequena Sophie para algum lugar mais seguro, porém, esse lugar mais seguro, simplesmente, não existe, não para nós, reles proletariados, a não ser que nos mudemos de mala e cuia para as nuvens, onde estão arquivadas todas informações secretas do mundo. As pestes têm predileção pelos energúmenos; Deus, de raiva, os repele. Não sei como o céu sustenta tamanha arbitrariedade. Se eu fosse nuvem, chovia todo santo dia, até lavar as decrepitudes do mundo.
Ultimamente, Vincent, o meu amor, o melhor maqueiro do condado de Elementaire Ville, sente-se abatido. Trabalha na linha de frente contra a pandemia viral. Por trás dela — da linha de frente —, senta e chora. Ele teme transportar microrganismos pelos poros e pelas lágrimas, contaminando a mim e à pequena Sophie. O número de acometidos pela Peste Neurogênica de Yahoo não para de crescer. Epidemiologistas oficiais falam em achatar uma tal curva de contágio da doença, receosos de que um massivo apagão neuronal devolva à sociedade matilhas de cães andaluzes mentalmente incapacitados.
A assistência antissocial do governo, aliada à Bancada da Bala de Prata e ao Ministério das Propinas Essenciais, principiou a construção errática, desenfreada, de condomínios fabulosos, espigões edificados com vergalhões e argamassa, até que os tijolos dos homens toquem o céu-de-meu-deus. São asilos públicos destinados ao isolamento vertical, peremptório, de pacientes cujas famílias não tenham condições morais, éticas, psíquicas, religiosas ou financeiras para manter os parentes lobotomizados pelo vírus dentro dos próprios domicílios.
São tempos impensáveis até mesmo para um Gabriel García Márquez. Embora seja uma peste inédita, parece claro à comunidade científica que a taxa de letalidade da doença, que consiste no poder de fogo do micróbio para dizimar vidas, é insignificante. Logo, não cessa de crescer o contingente de convalescentes insanos e salvos. Após serem acometidos por febre, pigarro, malemolência e maledicência, os infectados pelo insidioso, escabroso vírus de Yahoo, quedam aleijados dos cinco órgãos dos sentidos e, o que é mais grave, da memória recente e da memória antiga. Resumo da ópera: em conformidade com os boletins oficiais diários, infelizmente, mesmo sob condições adequadas de temperatura e pressão, os cidadãos afetados pela pandemia do vírus de Yahoo serão devolvidos às famílias, desprovidos de elã e alma, pois, atributos essenciais que terão evaporado nos aerossóis de febre.
Hoje é aniversário de Demiatt. Faz tempo que já não sonho mais com ele. Sou incapaz de me lembrar de sua voz. Que espécie de mãe esquece a voz do próprio filho? Já não bastava uma janela esquecida aberta? Batam panelas, vizinhos, mas, por Deus, taramelem os portais. Quisera evaporar, também, em aerossóis de febre, mas, não posso. A vida prossegue. Um bolo de nozes precisa ser feito. Sophie terminou a garatuja. Vincent chegará em breve com uma fome que nem lhes conto.