Há alguns pares de anos, estive em uma paróquia do interior. O padre era jovem, a igreja era recém-reformada, os bancos novos, tudo novo. Mas a prática era antiga. O pároco tocou metade da missa em latim — mais tarde descobri que na ordem dele havia sacerdotes que realizavam a celebração de costas para a plateia — tudo em nome da tradição e do ritual.
O juiz da paróquia também era novo. Entre uma advertência e outra a senhoras de trajes inadequados para o ambiente, o padre o saudou, tirando do bolso Santo Ivo e São Tomás Morus, invocados como patronos do direito para dar as boas-vindas ao homem da lei.
Dias depois, o juiz descobriu, utopicamente, que a saudação não era gratuita: o padre apareceu como réu numa audiência — sua batina preta e litúrgica contrastava com a toga negra e solene do magistrado.
Essa coisa difícil de definir — a liturgia — é algo a que nos afeiçoamos desde cedo: papai e mamãe são chamados assim para manter a ordem da hierarquia familiar; do contrário seriam João e Maria. Levantar, arrumar a cama, lavar o rosto, escovar os dentes e trocar de roupa: só depois o café da manhã. Há todo um ritual a ser seguido mesmo nas pequenas coisas.
Tem sido constante, porém, nos depararmos com a quebra da liturgia. E há, é claro, quem reclame: já vimos isso a partir de figuras proeminentes da República. E vemos também nas mesas de bar, das conversas mais requintadas às mais etílicas, gente reclamando porque o tal sujeito não guarda a liturgia do cargo.
É claro que o cidadão que celebrava a simplicidade das peladas de ontem na Granja do Torto é o mesmo que abomina o tuiteiro trapalhão de hoje. E vice-versa.
Parece que, na verdade, adoramos a liturgia, mas sentimos um imenso prazer em escanteá-la, devidamente ou não. Não sei, parece que é cool quebrar o protocolo, como se o primeiro sujeito que fizer um high-five com a Rainha equivalha ao primeiro que pisou o solo lunar.
Montesquieu conta que, na Antiguidade, o povo romano foi o que mais demorou para se dissolver, porque “Roma era um navio mantido por duas âncoras na tempestade: a religião e os costumes”. Ele — Montesquieu — e Neil Armstrong devem estar se revirando em seus túmulos nesses tempos de banalização da liturgia.
Todavia, aceitemos ou não, parece ser próprio da alma humana se encantar tanto com a beleza dos ritos quanto com a informalidade. Conta-se que, na guerra civil nigeriana da década de 1960, que combateu e rechaçou a pretensão de independência de Biafra, a ONU e seus protocolos não foram suficientes para conquistar um cessar-fogo; tampouco a solene beatitude do Papa Paulo VI foi capaz de paralisar o conflito. Pelé e seu Santos Futebol Clube foram lá e, em 4 de fevereiro de 1969, suspenderam o conflito para que jogassem contra uma seleção local.
É claro que a guerra continuou depois e as peripécias futebolísticas de Pelé e seus colegas serviram na verdade como propaganda do regime do ditador Yakubu Gowon para massacrar de vez os biafrenses. Mas a lição que fica do episódio é a de como a retórica mambembe pode ser, muitas vezes, mais eficaz do que a diplomacia protocolar.
Lógico, a liturgia é importante. Ela separa os homens dos meninos. Serve para delimitar os espaços a serem ocupados por quem manda e quem é mandado. Sem ritualística, por exemplo, alguém pode ser condenado sem direito de defesa; um presidente pode ser eleito — ou pior, simplesmente empossado — sem eleição, e daí por diante. Mas como desfazer esse nó? Conciliar a necessidade da liturgia com o gosto humano pela informalidade?
É preciso, primeiro, saber em que lugar se está e que posição se ocupa. Ou, em português não litúrgico: não ser um sem-noção, um aleatório na vida. Se o ambiente, a conveniência e a lei exigem, não se deve abrir mão da liturgia. Lapsos de descontração? A ocasião vai mostrar ao protagonista mais concentrado se é o lugar e a hora.
Depois vem o jogo das estatísticas: aprender com os erros e perseverar nos acertos. Não deu certo? Foi constrangedor? Não repita.
Termino, liturgicamente, dizendo: seja pela temperança socrática, seja pelo equilíbrio confuciano, nessa história da liturgia, como em outros paradoxos da alma humana, mais importante que apontar o dedo acusador é encontrar o próprio caminho do meio.