O tempo passa como um rio que nos olha sem parar

O tempo passa como um rio que nos olha sem parar

Era um folguedo antigo, lembra? Jogar bolas de gude, no cimento da praça. Ou tampinhas de refrigerante. Como é também um tanto desbotada a palavra folguedo, mas que goza, entretanto, de um frescor artesanal. Frescor que passeia livre em nossas pueris lembranças.

Nossos olhos já brincavam de ziguezaguear à toa, se intrometendo em nossas infâncias, algumas travessuras mescladas ao sumo de maduras carambolas, roubadas gostosamente do pé da casa das tias ou vizinhas.

Depois nossos olhos cresceram, adolesceram e foram jogar boliche, sempre redondas, pesadas e incertas bolas, buscando acertar metas no longo corredor comprido e encerado. Diversão noturna, regada à cerveja, azarações, alguns eventuais ficantes no pulsar das madrugadas promissoras.

Mais tarde, entramos na sinuca dos bares. Jeito cool, meio mafioso, as bolas, o taco nem sempre preciso, a bola sete, estratégias e desvios simultâneos no entrechoque destes olhos rolando a esmo na mesa de feltro.

Sem que imaginássemos, porém, perdemos certa vez nosso dinheiro e, com estas bolas-olhos-de-viver-aos-solavancos, fomos com um esfaimado sorriso circense exercer malabarismos nos nevrálgicos abre-e-fecha dos sinais de trânsito.

Eram todos olhos metafóricos os nossos aqui descritos. Você já reparou?

Os da infância, perdidos em superfícies cimentadas. Glóbulos de retina exposta a aventuras inexperientes e verdes ainda, piscando buliçosas e irrequietas traquinagens.

O boliche, a sinuca, o fascínio da sedução redonda, ultrapassando sinais de trânsito, definiam eventuais percursos ou distrações dos nossos olhos.

Até então a malícia estava em greve, sonolenta, desconhecida e distante dos nossos neurônios e da nossa curiosa visão — sentido, aliás, explicitamente alerta, filtrando cores e fatos, acoplados nas membranas de paisagens do mundo.

Aí nossos olhos tomaram outros rumos. Foi quando a maturidade bateu à porta de nossa razão afoita e já um tanto embebida em inaugurais malícias.

Os olhos esconderam-se ladinos na saliva ambiciosa de porta-joias, na conta corrente surrupiada do quase noivo. Na gula adornada por azeitonas importadas, em tentação nos couverts de restaurantes caríssimos, untados a pompa, elegância e cardápios únicos.

Nossos olhos também, sem mandar recado, escorregaram em relacionamentos fortuitos e se perderam rapidamente nos muitos outros rondando à nossa volta. Olhos que eram teus, por acaso. Eles ansiavam gritar “Amor, amor”, mas sem quaisquer sinais de emissão sonora.

Gritar em silêncio vítreo e corajosamente honesto, algum assustado sentimento, desatrelado das tecnologias do século 21.

A fuga, contudo, anunciava-se embutida neste encontro, quando nossos olhos se adesivaram a outros e aos teus.

Sim, porque, havia aqueles olhos outros, aficionados no redondo das bolas de futebol, rolando no milionário gramado junto aos pés dos nossos ídolos. As irresistíveis luvas e prêmios dos clubes internacionais.

Até que os smartphones invadiram nosso presente e a premência de atualíssimas  intenções touch, apartadas da simples, aveludada e erótica tatilidade entre humanos.

Telas de amoled, sistemas operacionais velocíssimos. Os olhos se hipnotizaram com as premissas de tantos aplicativos e viagens nas redes virtuais.

De novo pularam fora as órbitas. Rejeitaram namoros licorosos em eloquente início. Saltaram para micro telas reluzentes e obedientes, afixadas em nossas mãos e dedos, nossas incansáveis e polivalentes gueixas digitais.

Atualmente circula nas ruas de países aflitos ardorosa campanha cingida aos retornos dos olhos à sua função de olhar, poetizar, admirar, contemplar as luzes e suas sombras no decorrer dos tempos e das horas mortas.

Olhos que aplaudam encantados todas as nuances de estações provisórias, aterrissadas nos vastos continentes da imensa geografia do planeta.

Que se intrometam em jogos de praça, bolinhas de gude inocentes, ou painéis digitais- eletrônicos consoles sofisticados e ultrassensíveis, viciados no comando de games complexos.

Mas que não desistam, estes olhos de vidro, de se recolarem plenos aos nossos rostos sedentos por contato. Que insistam sempre, estes olhos úmidos, em cerrar as pálpebras devagar. Não apenas durante o sono. Que fiquem à espera de delicados e mornos beijos.

Porque estes beijos e estes olhos macios ainda existem e resistem hoje . Mesmo que você duvide, eles existem e insistem. São carinhos apaixonados, embora sutis às vezes. E felizmente nada tecnológicos.

Ilustração: Lori McNamara.
Graça Taguti

Professora e escritora.