Gusttavo Lima e a hipocrisia dos sinalizadores de virtude

Gusttavo Lima e a hipocrisia dos sinalizadores de virtude

“Mas é só fazer ‘live’ sem beber e falar palavrão”, dizem panfletários da virtude, enquanto dormem no sofá da quarentena e esperam o apocalipse, tuitando corajosamente sobre “democracia”, “liberdade”, “empatia”, “tolerância”, “educação”, “paz”, “sororidade”, “antifascismo” e outras palavras esvaziadas que aliviem suas existências.

Bradam os virtuosos: “Os vídeos dos espalhafatosos sertanejos ficarão acessíveis a todos, inclusive a crianças (já pensou?!), pois se perpetuarão no Youtube”. Ora, mas os shows ao vivo são transmitidos à noite — hora em que filhos de pais virtuosíssimos estão dormindo — e ficam tão acessíveis no YouTube quanto um vídeo pornô o é em um monte de “site”. Que raio de argumento é esse?

“Mas ele deveria ser um exemplo de comportamento; os heróis da nação não podem ser assim, isso é sintomático.” Mas de que heróis estamos falando? Quem vê herói num cantor sertanejo? Se alguém procura heroísmo em qualquer ser humano (político, ator, cantor, professor, pai, mãe), o problema certamente é do incauto que procura! Sob a carne humana, reside um poço de contradição, erro, acerto, lágrima, riso, suor, sangue, baba, sexo, briga, desejo, inveja, traição, coragem, gula, beleza e feiura. Pessoas reais buscam pessoas reais, querem ver nelas seus próprios erros e acertos. É nossa natureza conectiva. Negar isso é negar a si mesmo, é distorcer a própria imagem, é perder a autoconsciência e projetar no outro a pureza hipócrita (não) percebida em si.

Mas há um nível de hipocrisia a partir do qual se dilui o véu que separa o avatar do ser humano verdadeiro. Então, começa-se a procurar no outro o que se finge acreditar possuir: um arcabouço de lindas e puras paisagens verdejantes, adornadas por verdadeiras cantigas de amor e amigo. Cancelem os sertanejos poluidores de nossa paisagem!

É verdade que falta olhar de beleza no mundo; o olhar humano tem perdido a capacidade de agregar arte à natureza ao retirar dela própria a beleza. Arte virou qualquer coisa que se chame “arte”. Com efeito, a arte não tem mais o compromisso com o belo e, nesse sentido, talvez a música dos sertanejos não seja a apoteose da arte em si. Mas a finalidade de sua ação é.

“Que nada! É tudo por publicidade e dinheiro!”, gritam os virtuosos, descobrindo a roda e o fogo, simultaneamente. Gostaria de entender o exato segundo em que dinheiro virou patifaria. A mais objetiva forma de sopesar valor, pagar as contas, realizar sonhos e fazer caridade de repente virou a degradação de qualquer ação que possa sonhar em ser boa. Caridade de bilionário honesto não vale nada. Doação de milionário honesto é um insulto. A mera menção a dinheiro torna qualquer ação estúpida. É preciso salvar as pessoas da fome e do abandono, mas tem que ser com amor e carinho. Com dinheiro não. Aí já é demais.

É a coisa mais mentecapta que já vi na vida. Por analogia, tirem BBB, tirem as novelas, tirem até mesmo a “Lagoa Azul”. Apaguem Nelson Rodrigues, Rubem Fonseca, Bukowski, João Ubaldo, Vinicius de Moraes, É o Tchan e Mamonas Assassinas da história também, afinal todos eles são uma mistura de busca por dinheiro, provisão de entretenimento e escancaramento dos nossos pecados. A diferença é que os sertanejos estão convertendo isso em caridade.

Que nação de fracos, sensíveis e principalmente SELETIVOS é esta que se deixa engolir por um cantor bebendo num vídeo, mas não pelo comportamento obsceno de personagens da tevê? Matem Nazaré Tedesco e Carminha, escorracem Deadpool e Hagar (aquele bronco da tirinha, já pensou?!). Mas, sobretudo, enterrem Anitta e Luísa Sonsa de cabeça para baixo — sob um manto de sagradas e puras orações — para esconder os flamejantes quadris, as indecorosas palavras e as ideias contaminadas.  É tudo cancelamento, afinal. Cancelem todos esses homens e mulheres que absurdamente (!) carregam antivirtudes, mas que deveriam fingir santidade para agradar a quem nada de braçada na hipocrisia. E então, quando o ambiente for suficientemente asséptico e correto, façam uma “live” de unicórnios veganos e bonzinhos morando felizes em Nárnia. Quando a quarentena acabar, eles podem ser entrevistados no Programa da Fátima; será lindo.

Mas arrecadem as mesmas coisas. Doem as mesmas coisas. Aliviem a vida de quem perdeu o emprego na quarentena da mesma maneira. Aliviem as famílias amedrontadas e confusas da mesma forma. Cativem da mesma forma. Alegrem da mesma forma.

Aguardamos.

Fotografia: Reprodução