Eu tinha sobrevivido à uma facada no último verão. As fezes ainda escoavam débeis, lentas, preguiçosas, pelo orifício defecatório natural, mas, como me dizia o doutor Varela, médico especialista em dragas anatômicas e exaustores fisiológicos, tudo era uma questão de tempo. Em breve, com a ajuda de Deus e dos ótimos purgantes produzidos pela indústria farmacêutica, eu estaria evacuando com a classe de um cisne e com a consistência de um cabrito.
Ouvi batidas na porta. Chequei pelo olho mágico e vi um entregador que vestia um escafandro da Macy’s. Estancado do lado de fora, o rapaz balançava o embrulho. “Troco para 100, por favor”, pedi. Enfiei a cédula sob a porta. Ele catou o dinheiro, examinou contra a luz do teto para certificar que não era falso. O que não faltavam naqueles dias de caos eram malandros passando a perna em quem quer que fosse.
O boy jogou o troco por baixo, fez um sinal de positivo com o dedo polegar sujo de merda, virado pra cima e saiu. Só abri a porta depois de escutar os seus passos lépidos sumirem escadaria abaixo. Destravei as várias trancas da porta. Temia-se muito pela segurança. As dobradiças rangeram de ódio. Cuspi sobre a ferrugem. Catei o pacote para conferir se a encomenda estava completa. Laxativos. Biotônico Fontoura. Pomada de Minâncora. Antidepressivos. Camisinhas. Eu não tinha pedido camisinhas. Quanta gentileza da farmácia. Mandaram preservativos masculinos de brinde. Era um mimo exclusivo para clientes habituais como eu. Mesmo assim, achei a iniciativa intrusiva, quase, um deboche. Eu morava sozinho naquele cubículo e, desde o início da pandemia, estava proibido de me encontrar com Sophie.
Passava o tempo lendo Bukowski, embriagando-me com Cuspe Sour. A inspiração para escrever tinha minguado. O ócio me amassava. Estava torrando as últimas economias de forma perdulária, contratando os préstimos de uma dona estonteante que cobrava cinco pilas por minuto para fazer sexo virtual com os clientes. Escutei barulho de chave rodando dentro da fechadura. Era a vizinha do 69. Não estava tão atraente quanto das outras vezes. Enfiou o focinho para fora. Usava um roupão puído, surrado, com desenhos de fadas, borboletas e outras bobagens de temática adolescente. A princípio, pareceu-me uma figura patética. Os cabelos estavam desgrenhados, tinham as raízes brancas e malcuidadas. Usava uma máscara de pano com a imagem de Mojo Filter imitando pistolas com os fura-bolos.
A moça disse bom dia e perguntou como eu estava me saindo com a quarentena obrigatória. Respondi que, na medida do impossível, estava tirando a coisa toda de letra, porém, as reservas financeiras estavam definhando, queimando até a guimba. Ela gargalhou. Por segundos, imaginei como estaria a sua boca em tempos de pandemia. Pintava os lábios com batom? Fumava Jeronimo’s aromatizados? Aproveitei o ensejo para prestar condolências pela morte da sua avó. Moravam juntas. Lamentavelmente, a velhota bateu as botas no alto dos 90. A vizinha do 69 teve que se virar sozinha, encomendar a alma da falecida, vedar o cadáver com um sapeca-negrinho, carregá-lo sem ajuda escada abaixo e depositar o corpo no passeio público para que as autoridades sanitárias o recolhessem. Parecia coisa de gripe espanhola. Um escândalo.
Eram dias mórbidos, sofridos, dantescos, não restava a menor dúvida. Apesar dos danos, notei que ela tinha os pés impecáveis, unhas coloridas e um anel de latão. Fazia três dias que a telefônica tinha cortado o sinal da internet, portanto, eu estava numa seca que nem lhes conto, matava muriçocas a grito, entregue à própria sorte, sem gozar dos roteiros libertinos de uma amante virtual que sequer transmitia sífilis. Uma amante perfeita para dias isolamento e peste. Perguntei à vizinha se ela não se importava de abaixar a máscara por alguns segundos, por mera curiosidade. Ela respondeu por que eu não me aproximava e fazia isso por ela.
Em tempos de uma letalidade comendo solta pela UTI do condado, aproximar-me dela seria uma atitude deveras arriscada. A moça percebeu que eu vacilava. Então, fingindo distração, expôs um dos mamilos pelo vão da roupa. Sua teta rosácea parecia um mamãozinho-papaia. Caminhei confiante. Descumpri a distância regulamentar de um metro e meio, recomendada pelas autoridades sanitárias.
Eu era uma besta. Sorri como um camelo. Depois de besuntar as mãos com terebintina gel, para liquidar com os microrganismos nocivos, retirei a sua máscara, pegando pelas bordas e… Bingo! “Batom vermelho”, sussurrei. Beijamo-nos como se o mundo fosse terminar amanhã.