Saber escrever, de modo sintético, é fundamental para a formação de todo escritor. Colocar muitas ideias, em poucas palavras, no papel, ou na tela do computador, não é tarefa simples, ao contrário, é um desafio e tanto! Em especial, se se fizer necessário cortar algo no texto, composto árdua e esmeradamente. A sensação é a de um corte na própria carne. Corte é corte. Mesmo o da caneta. Todo corte dói. E, às vezes, frustra. Porém, aos que se expõem a esse sacrifício estético, algumas surpresas extraordinárias, não raro, revelam-se e motivam o autor a novas criações. Com o intuito de incentivar a leitura, produção e difusão desse gênero literário tão instigante, a Revista Bula selecionou, para seus leitores, 31 microcontos que primam pela concisão, mas não de criatividade, e sim, de palavras. Um exercício fantástico. Para uma leitura agradável.
Ilustração: Mohamed Hassan
Perda irreparável
Tanto a dizer, de sonhos a compartilhar. Mas de repente você se foi, qual aragem das manhãs. Antes que eu formulasse os termos do discurso.
Edival Lourenço
Uma vida e qualquer fim
De muita demora, fazia-se a volta do filho que não vinha. Pegar o documento, ali no carro, era pouco mais de dois minutos. Ela seguiu o barulho eclodido na rua. Nem grito, nem desmaio, só o filho no chão, com a cabeça partida ao meio. A moto, ao lado, dava conta de tamanha dor, que começava agora.
Maria Helena Chein
Espera
Esperei você por dias e madrugadas, entre a lucidez do amor e a loucura dos desesperados. Esperei entre porres e sonhos, estações e desterro. E você não veio. Estava dentro de mim.
Nasr Nagib Fayad Chaul
Sobras
Sai à noite. Aspirei odores de lua. Vi luares boiando no rio. Contemplei a constelação de nadas. E hospedei-me num canto da lua. Em outro, ele, disfarçado de São Jorge. Montado em uma estrela roubada. E murcha. Sem a espada. Só com o Dragão a destilar restos de nós.
Lêda Selma
Lembrança colorida
Menino, achava esquisito meu pai sair de casa de pijama. Mercado, feira, venda, até farmácia. Hoje olhei no vidro da porta quando girei a chave. Quase dava para sentir o cheiro do tecido e algodão seco, ao sol escaldante do quintal. As listas eram um arco-íris em movimento. O mesmo pijama recém-lavado. Sai. Saudades.
Mara Públio
Dissimulação
Da cachaça suspeita, salvou-se, e a tolerância da casa suportou sua aparente santidade. Os presentes, agrupados em ridícula igrejinha, pediram-lhe a bênção, enquanto ele, bêbado, espalhou água benta pelo lugar e, no quarto mais escuro, urrou a noite inteira.
Kleber Adorno
Pangloss
Frederico se encanta fácil. Voltou da fazenda esses dias e me disse de olhos esbugalhados: José, não é incrível? O ovo da galinha é feito do tamanho exato do espaço na caixinha! Não sobra nem falta. E o lombo do cavalo, criado no formato certo pra sela do cavaleiro? A criação é perfeita! Dizia essas coisas com tanta maravilha que eu, querendo responder, sentia-me como vilão de filme antigo. Então só confirmava: de fato, meu amigo. Algum arquiteto distraído, algum demiurgo de plantão fez nossos olhos na exata medida da nossa ilusão.
José M. Umbelino Filho
Primogênito
Os pais estavam entre êxtase e temor. Olhos no berço. Corações acelerados. A voz da mãe quebra o segredo da hora.
— Ele é tão pequeno. Será que cresce? Cria? O silêncio permanece interminável na filosofia do pai.
Uma voz responde: — Vai ser escritor.
Maria de Fátima Gonçalves Lima
Estranho convite
Apareceu-me um ser alado, de camisolão branco, dizendo coisas estranhas; nada entendi daquele idioma de outra galáxia, outro planeta, sei lá. quando ele desapareceu, clareou o dito: amanhã estarei à sua espera na festa do céu. Declinei do convite, e até hoje não fui à festa do céu.
Zanilda Freitas
Dando Ibofe
Levou para casa o seu bofe e achou que estava dando o maior Ibope. Foram tantos escândalos, tantos gritos e panelaços em manhãs de ressaca, e sopapos, que o bairro inteiro entrou em situação de pânico. Logo toda cidade sabia a fria em que se meteu.
Brasigóis Felício
Rara flor
Existe uma linda flor no alto de uma montanha, que nunca ninguém havia conseguido chegar até lá para apreciar a beleza daquela flor. Houve uma competição de príncipes que queriam presentear as princesas com aquela rara flor. Apenas um príncipe conseguiu retirar a flor da montanha e entregar a princesa, porém a viagem foi muito longa… Quando o príncipe chegou em seu castelo, encontrou a princesa com saudades… A princesa lhe questionou pela flor, o príncipe desesperado mostrou a flor já em estado seco, o que motivou a tristeza daquela princesa…. E assim a flor perdeu sua essência…
Kamila Tavares de Almeida
Mini
Miniconto, eu conto. Miniconto, um ponto.
Maria Abadia Leão
Unificação
Num piscar de olhos sumira o dinheiro do mundo. Pela primeira vez na vida, igualaram-se pobres e ricos.
C. J. Oliveira.
Extremos
Beirando perigosamente o precipício, gabava-se o montanhista de nunca haver caíííííííííído…
Reneu do Amaral Berni
Argumentos infantis
— Se brigar comigo mando Deus matar você.
— Como assim? Manda Deus me matar?
— Mando Deus matar você.
— Você manda em Deus?
— Todo mundo manda em Deus!
— Mesmo? Como assim?
— Todos falam: Deus te abençoa. Dorme com Deus. Vai com Deus. Deus te acompanhe. Não vê? Todos mandam nele!
Elizabeth Abreu Caldeira Brito
Havia José em Minas
Passos, colégio, padres, professoras, oficinas, jardins, dia de São José, 1958, memória. O reitor reúne os José, reza e dá duas balas para cada. Da sacada, um frei joga milhares de balas. Disputas e alegria da meninada não José. Meu primo, ao ver nossos bolsos e mãos cheias de balas, declarou: Não quero mais ser José!
Enio Magalhães Freire
Beco…?!
Madrugada! Lua cheia! Seresteiros caminhando no beco comprido, estreito, para encurtar o caminho da volta. Deu medo!!! Melhor tocar! Súbito, a moça. Dançando, dançando. Eles indo, ela vindo. Porque olhavam para o chão, viram. Ela não andava. Ela flutuava. Pavor!!! Correram sem olhar para trás. Beco? Beco, nunca mais…
Heloisa Helena de Campos Borges
Fúria
Sentiu-se impelido por uma força indomável. Uma fúria cega dominou-o, lançando-o, os punhos em riste, contra a figura patética que ria diante dele, para ridicularizá-lo. Lamentou não portar um revólver. Fechou o punho e mirou a cara do outro, surdo à gritaria do povo ao seu redor…
Itaney Campos
Sinal fechado
Parado no sinal fechado, vejo na calçada uma criança com um pedaço de madeira retangular encostado no ouvido, como se fosse um celular. Seu rosto está risonho e seus lábios se movem. Com quem será que ela fala? Penso em pegar meu celular e ligar para ela. Será que vai me atender?
Dimas Vieira da Rocha
Orgasmo ególatra
Mirou na sua silhueta refletida à luz da Lua. Tocou em seus cabelos. Ela ficou em dúvida se aquilo era carinho espontâneo ou fruto de seus reclamos prévios. Correspondeu aos afagos e sobrou-lhe apenas o vazio.
Elson de Souza Ribeiro
Bússolas
Quando todos nasceram com bússolas, Lúnula nasceu sem. Quando todos seguiram seus destinos e abraçaram seus papéis, ela se perdeu. No fim, quando todos morreram, Lúnula foi a única que viveu.
Pedro Henrique Dantas
Escrever
Nasci da alma. Escolhi escrever. Abracei o deserto. Beijei as palavras. Agora sou invisível. Metamorfoseei em poema, clamo pelo livro. Declarei amor ao Povo das Letras no paradoxo do lírico-satírico. Confessei a paixão literária. Casei com a Poesia. Despeço-me da sede de poetar.
Valéria Victorino Valle
Avião azul
Os filhos devem ter ouvido de Antônia que o pai mandaria um avião azul para buscá-los. Olharam um tempão para o céu, depois as cabeças foram abaixando. E a seca brotou nos olhos deles, a vaga de não ter mais que esperar.
Ana Luiza Serra
Tons de cinza
Ele nem dormiu direito. Só cochilou. Precisava estar pronto para a grande saudação. Quando chegou a hora, uma explosão de cores quentes tomou conta do céu. Ele logo se recolheu, dando lugar aos tons de cinza. Ouviram-se sons estonteantes e…zaz… Maravilhosamente bem-vinda !!!
Leila Scaff de Vellasco
Pré-datado
Você diz que me ama a cada dia mais, que é para eu ficar seguro. É assim? Então vou além: já sinto saudades do futuro.
Carlos Edu Bernardes
Desentendido
A multidão parada. A poeira assentando, podia-se vislumbrar o morto. Logo o morto saiu andando.
Elias Antunes
Peremptório e mui complexo prosema microcôntico, macrotitulado, de Baldolino
Já de vírgulas cheio, meti um ponto no meio.
Juliano Barreto Rodrigues
Cerrado
No dia nacional do Cerrado é especial, comemorado no dia 11 de setembro de todos esses anos de doces saudades, entre flores e folhas. Amarelecera no chão suas folhas, que o vento levara…seca, fogo, entre temporais a perdição do Cerrado, floriam os ipês…
Marlene Nogueira
Mundo cão
Um menino pede esmola enquanto segura um cachorrinho. Uma mulher vê a cena e diz, comovida:
— Pobrezinho.
O menino levanta os olhos, esperançoso.
— Me dá seu cachorro. Eu cuido dele.
Ele aperta o filhotinho nos braços e depois o entrega, resignado. Pelo menos um deles teria um lar.
Simone Athayde
Sonhos
Sonhar é ter fé, fé é ter certeza que um sonho pode ser realizado, a curto, médio ou longo prazo. Feliz é a pessoa que sonha, ou acredita em seus objetivos, ter objetivos é focar naquilo que almeja. Hoje sou feliz por ter vários sonhos realizados, através de minha fé, em não querer apenas o desempenho mínimo de minha capacidade.
Santos Francisco de Almeida
Mago
Ele é mago. De verdade. Leu um livro sobre um menino mago. Não gostou. Fez o livro desaparecer. Todos os livros.
Ademir Luiz