Ao longo dos séculos, ciência e fé estabeleceram um verdadeiro pugilato para a prevalência de seus respectivos interesses. Sem precisar entrar nos pormenores históricos do embate, registra-se que em países como o Brasil, por exemplo, a religião exerce papel fundamental nas tomadas de decisões políticas e na visão média da população. Ter apego à fé, por aqui, é exercício de sobrevivência para encarar uma realidade muitas vezes nada agradável. Porém, o choque entre razão e dogma não pode jamais se confundir com a propagação da ignorância deliberada, centrada num total negacionismo de fatos cientificamente comprovados. Sem dúvida, é nesse vale sombrio que mora o perigo das catástrofes previsíveis que, se tratadas com inteligência, poderiam ser atenuadas ou até evitadas por completo.
Ao revisarmos a história humana, veremos que não foram poucas as vezes em que a religião e a ciência entraram em rota de colisão. Dos idos das perseguições a Galileu e a Ibn Rushd, passando pela Santa Inquisição, é notório que, por certos aspectos de uma irem de encontro aos da outra, com enorme frequência fé e ciência colidem frontalmente, gerando embates às vezes infindáveis. Isso quando entre elas não há a imposição bruta das armas do Estado, diga-se de passagem. Ainda assim, estudiosos de renome, como o físico Marcelo Gleiser, acreditam que existe espaço para uma demarcação pacífica de cada uma delas em seu específico território de atuação, sem que para isso haja necessidade de conflito. Segundo ele, “a ciência não quer matar Deus”.
No Brasil, a religiosidade ocupa espaço indispensável na construção da nossa sociedade plural. Na ausência do Estado, é a fé que invade as mais delicadas situações da vida dos menos abastados. As igrejas atuam, nesses momentos, como entes protetores de vulneráveis e oferecem não apenas as sagradas palavras da bíblia, mas também prestam serviços sociais em locais que o poder público parece não alcançar. Nesse sentido, a religião cumpre uma força tão evidentemente reconhecida que a atuação de seus líderes se expande para além das paróquias e templos, chegando a preencher cadeiras políticas e a nortear decisões do governo do país. E isso, na maioria das vezes, é algo temerário.
Não é que a religiosidade ou a fé representem, genericamente e per se, aspectos prejudiciais ao bom desenvolvimento político da nação, longe disso. Mas o Estado, obviamente, não deve se confundir ou se subordinar a nenhuma religião, por majoritária que seja. Apesar de existir a determinação constitucional da laicidade, isso não significa que o Estado deva ser antirreligioso; o que tem que prevalecer é a separação necessária entre os dogmas da fé — qualquer fé — e as decisões políticas fundamentais do país. Qualquer posicionamento contrário a isso gera uma espécie de equívoco impositivo moral, muito perceptível nos confrontos sobre, por exemplo, o aborto e o casamento entre pessoas do mesmo sexo, para ficar apenas no campo mais polêmico.
Como o Brasil é o país mais católico do mundo e, tendo ainda centenas de milhares de praticantes de várias outras religiões, possivelmente também o mais apegado à fé, é comum que por aqui haja mais rusgas entre religião e ciência. É natural que a população, sabidamente sofrida, que batalha por horas a fio para garantir o seu ganha-pão, tenha na religião um porto seguro para seus problemas existenciais. Por essa razão, é bastante compreensível que essa parte mais alijada das contribuições da academia — o povo excluído, em sua grande maioria — tenda a se afastar das questões científicas e a se apegar aos ensinamentos de líderes que estão mais próximos dele, e cujo modo de dialogar se assemelha e se aproxima do seu — diferentemente do linguajar dos cientistas.
O real problema surge quando pessoas públicas e líderes sociais professam sua fé de modo a tentar anular os ditames da ciência. O negacionismo obscurantista é crescente nos dias atuais, e parece ter chegado inclusive ao comportamento dos que dele deveriam se afastar por completo. É extremamente lamentável que ainda hoje haja líderes políticos que confundam suas crenças com seu múnus público, principalmente quando essa atuação envolve a propagação da ignorância, em palanques televisivos ou através de outros meios de comunicação. Essa atuação desarrazoada não apenas é nociva para as estruturas democráticas como também afeta sobremaneira o pobre coitado que nutre esperanças de dias melhores e que vê na fala dos “importantes” uma fonte de sensatez.
É nesse contexto que surge um campo fértil para tragédias inenarráveis. Essa infeliz confusão tem um condão destrutivo, intensificado pelos interlocutores políticos que a adotam. O erro não está na fé — que, muitas vezes, torna-se solução para resgatar pessoas em situações complicadas. O problema é que ela deveria ser encarada como algo complementar à ciência — e não como sua inimiga. Einstein um dia afirmou que Deus não joga dados com o universo. Infelizmente, alguns políticos que lideram a nação não apenas parecem fazê-lo, como, usurpando o nome do Senhor, parecem querer tomar Seu lugar. E essa propagação da ignorância, podem ter certeza, tem potencial para matar mais do que o coronavírus. Não é questão de acreditar ou desacreditar. É apenas questão de tempo.