A direita afirma que o golpe se deu em março. A esquerda, para conectar com o dia da mentira, sustenta que ocorreu em 1º de abril. Há vários livros sobre o golpe e os governos ditatoriais. Listei 20, mas poderia ter arrolado mais de 50. Algum livro de alta qualidade ficou fora da lista? É provável. Mas listas são sempre lacunares. Poderia ter arrolado, por exemplo, livros de Octávio Ianni (“O Colapso do Populismo no Brasil”), Francisco de Oliveira (“Crítica à Razão Dualista”), Maria da Conceição Tavares (“Da Substituição de Importações ao Capitalismo Financeiro”), Carlos Castello Branco (“Introdução à Revolução de 1964”) e Francisco Weffort (“O Populismo na Política Brasileira”). Poderia ter citado um livro básico, como “O Governo Goulart e o Golpe de 64” (Brasiliense, 144 páginas), de Caio Navarro de Toledo, ou o terceiro tomo de “O Brasil Republicano”.
A história geral mais ampla do golpe de 1964 e sobre os governos da ditadura civil-militar, além da reação da guerrilha, pode ser encontrada nos quatro volumes escritos por Elio Gaspari: “A Ditadura Envergonhada”, “A Ditadura Escancarada”, “A Ditadura Encurralada”, “A Ditadura Derrotada” e “A Ditadura Acabada” Quem não conhece nada a respeito do regime instalado em 1964, ou conhece pouco, pode consultar, com grande proveito, os cinco livros do jornalista.
O uruguaio René Armand Dreifuss, no livro “1964: A Conquista do Estado — Ação Política, Poder e Golpe de Classe” (Vozes, 814 páginas, tradução de Ayeska Branca, Ceres Ribeiro, Else Ribeiro e Glória de Mello), escreveu o clássico sobre o golpe. A obra foi publicada em 1981, mas, quase 40 anos depois, sua pesquisa resiste — tal a sua qualidade. Claro que novos documentos foram divulgados, o que, de certo modo, desatualiza parte da pesquisa anterior. Dreifuss documenta bem a conexão militares e civis, o que prova que o golpe, além de militar, também foi civil. Documenta as ações do Ipes e do Ibad na articulação e financiamento da derrubada do presidente João Goulart.
“Além do Golpe — Versões e Controvérsias Sobre 1964 e a Ditadura Militar” (Record, 391 páginas), do historiador Carlos Fico, examina criticamente as principais obras sobre o golpe e a ditadura. Examina, com rigor, as virtudes e os problemas das obras de outros pesquisadores, como René Armand Dreifuss e Elio Gaspari (talvez seja a crítica mais consistente à pesquisa de Gaspari). Pesquisadores ganham um amplo e fundamental guia bibliográfico. No final da obra, Fico arrola documentos importantes, como a íntegra do AI-5.
“O Grande Irmão: Da Operação Brother Sam aos Anos de Chumbo — O Governo dos Estados Unidos e a Ditadura Militar Brasileira” (Civilização Brasileira, 334 páginas), de Carlos Fico, é um livro muito documentado sobre o golpe de 1964 e o regime civil-militar. A história de um “contragolpe preventivo”, a ser dado por João Goulart, é contestada pelo historiador: “Trata-se de especulação inconsistente não apenas porque é anacrônica. (…) não há nenhuma evidência empírica de que Goulart planejasse um golpe e todos sabemos que um golpe era planejado contra ele”. Fico nota que civis foram mais presentes na campanha de estabilização do governo de Jango. A participação americana “foi decisiva” para o golpe. “A Operação Brother Sam não foi pouca coisa.” Fico publica vários documentos.
O brasilianista Thomas Skidmore é autor de duas histórias gerais de qualidade sobre o Brasil: “Brasil: de Getúlio a Castello — 1930-64” (Companhia das Letras, 496 páginas, tradução de Berillo Vargas) e “Brasil: De Castello a Tancredo: 1964-1985” (Paz e Terra, 608 páginas, tradução de Mário Salviano Silva). Novos livros, como os de Gaspari e Fico, ampliaram a história do período. Mas as obras de Skidmore permanecem — com erros aqui e ali — como uma narrativa de qualidade.
No livro “1964 — O Verão do Golpe” (Maquinária, 269 páginas), o jornalista Roberto Sander construiu uma boa síntese do golpe, com uma leitura atenta da bibliografia, paralelamente faz uma análise da história cultural do período. Em suas páginas desfilam desde João Goulart, Castello Branco até a atriz francesa Brigitte Bardot, a cantora Nara Leão (estrela da Bossa Nova), o músico Jorge Ben Jor e o cineasta Glauber Rocha (o Cinema Novo). Mesmo na crise, o brasileiro estava de bem com a vida.
Uma biografia pode ser uma grata história de um período. É o que mostra o historiador Jorge Ferreira no livro “João Goulart — Uma Biografia” (Civilização Brasileira), de longe, o melhor estudo sobre o presidente deposto em 1964. Ferreira não pretende criar um novo mito. Pelo contrário, tira a roupa do mito criado pela esquerda e pela direita e vai além da imagem do herói e do vilão. Jango ressurge com cores novas, um político mais articulado do que se tem mostrado e menos pusilânime.
Aos militares são dadas poucas chances de se manifestarem de forma isenta. O livro “Visões do Golpe — A Memória Militar Sobre 1964” (organizado por Maria Celina D’Araújo, Celso Castro e Gláucio Ary Dillon Soares, contém entrevistas de vários militares que contribuíram para derrubar João Goulart e participaram dos governos ditatoriais. Há depoimentos moderados e radicais, apresentados de maneira integral, sem cortes. É um documento histórico valioso, um maná para pesquisadores. Porque os militares não falam com facilidade.
Há um livro que as redações de alguns jornais não podem resenhar — nem contra. “Cães de Guarda — Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988” (Boitempo, 408 páginas), da historiadora Beatriz Kushnir. A pesquisadora, num estudo alentado, mostra que, além de apoiar o golpe de 1964, a chamada grande imprensa coonestou os atos da ditadura. A relação com a censura foi bem menos tensa do que dizem alguns editores e donos de jornais e redes de televisão. Alguns veículos colaboraram, de boa vontade, com a ditadura civil-militar. O dono de uma revista teria enviado um profissional para treinar censores. Agora, quando todo mundo se apresenta “contra” o regime militar, o livro se tornou “maldito”.
O brasilianista John W. F. Dulles escreveu uma biografia ampla de Carlos Lacerda, o civil que mais trabalhou para derrubar o presidente João Goulart, em “Carlos Lacerda — A Vida de um Lutador” (Nova Fronteira, dois volumes, 1263 páginas, tradução de Vanda Mena Barreto de Andrade e Daphne F. Rodger). Nada escapa do meticuloso Dulles, desde a história do golpista profissional e do governador eficiente da Guanabara até os casos amorosos com as atrizes Shirley MacLaine e Maria Fernanda Correia Dias (filha da poeta Cecília Meirelles).
Um livro fundamental na historiografia do regime militar é “Brasil: Nunca Mais” (Vozes, 312 páginas), patrocinado por d. Paulo Evaristo Arns e pelo reverendo Jaime Wright. A obra relatou como atuava o aparelho repressivo e listou os principais torturadores dos porões da ditadura. Trata-se de uma obra rigorosa. Setores da direita atacam o levantamento, sugerindo que há falhas, mas, no geral, trata-se de uma pesquisa rigorosa e desapaixonada. Honestino Guimarães e a uruguaia Maria Cristina Uslenghi Rizzi, que foi casada com Tarzan de Castro, são citados. Honestino foi torturado e morto pelos militares. Cristina escapou.
O livro “Os Anos do Condor — Uma Década de Terrorismo Internacional no Cone Sul” (Companhia das Letras, 445 páginas, tradução de Rosaura Eichenberg), de John Dinges, mostra a conexão da ditadura brasileira com as ditaduras de outros países sul-americanos, como a chilena de Augusto Pinochet. Dinges conta, detalhadamente, como foi formatada a Operação Condor. Na página 215, relata que a brasileira Regina Marcondes foi sequestrada na Argentina, ao lado de Edgardo Enríquez, líder do MIR. As mortes de Juscelino Kubitschek, João Goulart e Carlos Lacerda são mencionadas na página 336.
O general-presidente Castello Branco permanecia um homem enigmático. O jornalista Lira Neto contribui para iluminá-lo na biografia “Castello — A Marcha Para a Ditadura” (Contexto, 428 páginas). Ele era uma espécie de Fouché, um homem das sombras, articulado e inteligente. E, sim, queria mesmo devolver o poder aos civis — desde que a um aliado, como Bilac Pinto. Mas, sob pressão da linha dura, aceitou a candidatura de Costa e Silva a presidente. “O que está em jogo é a sagrada unidade das Forças Armadas”, disse Castello aos aliados. “Vamos vender o futuro por uma solução precipitada do presidente”, contestou o general Ernesto Geisel. Ao exonerar Sylvio Frota do Ministério do Exército, anos depois, Geisel não quis ser o Castello Branco 2.
O livro “Ernesto Geisel” (Fundação Getúlio Vargas, 494 páginas), organizado pelos historiadores Marina Celina D’Araújo e Celso Castro, contém uma longa entrevista do general-presidente que, com o apoio de Golbery do Couto e Silva, matou a ditadura. Geisel mostra-se de uma sinceridade impressionante: “Acho que a tortura em certos casos torna-se necessária, para obter confissões”. Garante que o comandante do Exército de São Paulo, Ednardo d’Ávila Melo, era omisso e seus subordinados faziam o que queriam — daí as mortes do jornalista Vladmir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho. Admite que Juscelino Kubitschek não era corrupto. E relata como evitou o golpe militar do general Sylvio Frota.
“Combate nas Trevas” (Ática, 294 páginas), do historiador Jacob Gorender, publicado há mais de três décadas, permanece o mais importante relato sobre as ações da esquerda contra os governos militares. Embora crítico da ditadura, mostrando os abusos de militares e delegados de polícia, Gorender não faz uma defesa desbragada da esquerda. Faz críticas, aponta insuficiências de interpretação da realidade brasileira e revela justiçamentos feitos pelos esquerdistas. “A Revolução Impossível — A Esquerda e a Luta Armada no Brasil” (Best Seller, 755 páginas), de Luís Mir, é um bom livro, embora seja criticado por acadêmicos. Ele antecipou, por exemplo, uma história relatada por Gorender: o encontro de Carlos Marighella com o general Albuquerque Lima. Em plena ditadura.
“Como Eles Agiam — Os Subterrâneos da Ditadura Militar: Espionagem e Polícia Política” (Record, 269 páginas), do historiador Carlos Fico, é excelente. Fico talvez seja o principal historiador do período ditatorial. Sua história pode ser complementada pelo livro “Ministério do Silêncio — A História do Serviço Secreto Brasileiro de Washington Luís a Lula: 1927-2005” (Record, 591 páginas), de Lucas Figueiredo. “O modelo do SNI era mais parecido com o adotado pela ditadura comunista da União Soviética”, escreve Figueiredo.
Ser advogado de presos políticos na ditadura não era fácil. Mesmo assim, sob ameaças e pressões, alguns advogados trabalharam para encontrar (as prisões não eram notificadas às famílias) e defender presos políticos. “Os Advogados e a Ditadura de 1964 — A Defesa dos Perseguidos Políticos no Brasil” (PUC Rio e Vozes, 279 páginas), organizado por Fernando Sá, Oswaldo Munteal e Paulo Emílio Martins, com prefácio de d. Paulo Evaristo Arns, conta a história de Sobral Pinto, Modesto da Silva, Mário de Passos Simas, Heleno Fragoso, Aírton Soares, Marcello Alencar, Sigmaringa Seixas, George Tavares, Hélio Bicudo, Luiz Eduardo Greenhalgh e, entre outros, Dalmo Dallari.
O jornalismo e, mesmo, a academia ainda não digeriram a qualidade do livro “Mata! O Major Curió e as Guerrilhas no Araguaia” (Companhia das Letras, 443 páginas), do jornalista Leonencio Nossa. Como Curió é apresentado como uma figura execrável, porque teria contribuído para matar pessoas a sangue frio, um livro que apresenta sua versão acaba por ser malvisto. No entanto, ainda que se mantenha reservas, é provável que a obra deva ser vista sobretudo como um documento histórico. Mais: a pesquisa do repórter vai além das versões do militar. O jornalista Hugo Studart é autor de “A Lei da Selva — Estratégias, Imaginário e Discurso dos Militares Sobre a Guerrilha do Araguaia” (Geração Editorial, 383 páginas). A guerrilha deixou de ser “propriedade” da esquerda.
Vale a pena ler a biografia “Marighella — O Guerrilheiro Que Incendiou o Mundo” (Companhia das Letras, 732 páginas), de Mário Magalhães. O estudo consumiu nove anos e é excelente. É uma história do Brasil vista a partir da perspectiva de um indivíduo. Como não se trata de obra de condenação de Carlos Marighella (líder máximo da Ação Libertadora Nacional, ALN), que evidentemente não era democrata, acabou criticada com aspereza. Entretanto, embora empática, não se trata de obra de exaltação. É rigorosa, precisa.
A tese de doutorado de Ronaldo Costa Couto, apresentada na Sorbonne, é um dos melhores livros sobre a ditadura civil-militar. “História Indiscreta da Ditadura e da Abertura — Brasil: 1964-1985” (Record, 518 páginas) mostra, de maneira didática e analítica, como se deu a Abertura. É uma história minuciosa, que valoriza os políticos democráticos, evidenciando como trabalharam pela Abertura, atuando tanto no MDB quanto na Arena. Indica também a vocação de alguns militares pela redemocratização, casos de Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva.