No lugar de falar em gripezinha, Rodrigues Alves criou o Instituto Butantã e a Faculdade de Medicina de São Paulo e combateu a varíola, a febre amarela e a peste bubônica
O presidente da República Rodrigues Alves (1848-1919) — Francisco de Paula Rodrigues Alves — morreu, em 1919, de gripe espanhola. Foi o primeiro político brasileiro a ser eleito presidente duas vezes, em 1902 e 1918. Mas não assumiu o segundo mandato. Era um homem de rara decência e não se irritava com as críticas da imprensa. Seu ministro da Fazenda era o goiano Leopoldo de Bulhões.
O pai de Rodrigues Alves, o português Domingos Rodrigues Alves, chegou ao Brasil em 1832, radicou-se em Guaratinguetá, em São Paulo, e tornou-se produtor de café. O menino era um prodígio, o melhor aluno da escola. No Colégio Pedro II, superou inclusive Joaquim Nabuco, igualmente brilhante. Do Rio de Janeiro, mudou-se para São Paulo, para estudar na Faculdade de Direito do largo do São Francisco. Lá, tornou-se rival de Ruy Barbosa, outro estudante notável. Discordavam sempre, mas eram abolicionistas, republicanos e anticlericais.
Formado, Rodrigues Alves se integra ao Ministério Público e se torna promotor de justiça em Guaratinguetá e em São Paulo; depois, juiz. Já rico, casa-se com uma mulher rica, Ana Guilhermina de Oliveira Borges, com quem teve oito filhos.
Os filhos contam que Rodrigues era “bom, jovial e tolerante”. Viúvo em 1891, aos 43 anos, não mais se casou, optando pela política e por cuidar dos filhos. Sua história está contada no recém-lançado “Rodrigues Alves — A Modernização do Rio de Janeiro” (Folha de S. Paulo, 56 páginas), do jornalista e pesquisador Fernando Figueiredo Mello.
Começou a carreira política como deputado provincial pelo Partido Conservador, em 1872. Sua principal bandeira era o ensino obrigatório. Mesmo militando na política, atuava como produtor rural e dono de uma banca de advocacia. Em 1885, aos 37 anos, eleito deputado federal, muda-se para o Rio de Janeiro. Dois anos depois, é nomeado presidente (governador) da província de São Paulo. A cidade de Santos enfrentava uma epidemia de varíola e, incitados por abolicionistas, os escravos estavam se rebelando.
O principal porto de escoamento do café para o exterior era o de Santos. Rodrigues adota medidas profiláticas duras para conter a epidemia. Em 1888, retorna à Câmara dos Deputados e vota a favor da Lei Áurea, que libertou os escravos. A princesa Isabel o torna conselheiro do Império.
Proclamada a República, em novembro de 1889, participa da Assembleia Constituinte e assina a nova Constituição, em 1890. É eleito para a presidência da Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados. O presidente Floriano Peixoto o nomeia ministro da Fazenda.
No ministério da Fazenda, Rodrigues Alves trabalha para reduzir os gastos públicos e conter a inflação. Seu plano é rejeitado e, por isso, se demite.
Eleito presidente da República, Prudente de Moraes nomeia Rodrigues Alves para o Ministério da Fazenda. “Trata de reorganizar as finanças, com a defesa do papel-moeda e do câmbio, e a negociação direta com bancos estrangeiros”, assinala Fenando Figueiredo. Mas a queda das exportações de café e o aumento das importações agrava a crise econômica, o que trava o pagamento da dívida externa.
Se controla a inflação, Rodrigues Alves não consegue resolver outros problemas, como “a baixa do preço do café”. Acaba por deixar o Ministério da Fazenda.
Criador do Instituto Butantã
No Senado, apoia o governo do presidente Campos Salles. Depois, se torna presidente de São Paulo, em 1900. Combateu com eficiência a epidemia de febre amarela e a epidemia de peste bubônica (em Santos). Em 1901, apostando na ciência, criou o Instituto Butantã, “pioneiro na pesquisa de soros terapêuticos e na criação de vacinas”, frisa Fernando Figueiredo.
A queda do preço do café e a superprodução gestaram uma forte crise econômica. Para assegurar mão de obra, o presidente de São Paulo incentiva a imigração. Modernizador, Rodrigues Alves reformou a polícia, trabalhou pela autonomia do Poder Judiciário, ampliou o ensino primário e construiu obras de saneamento básico.
Em 1902, com o apoio do presidente Campos Salles, foi eleito presidente da República. Conquistou mais de 93% dos votos. Decente, quando pedia almoço da Confeitaria Pascoal, para ele e auxiliares, pagava tudo do próprio bolso. A história é contada pela historiadora Isabel Lustosa, no livro “Histórias de Presidentes — A República no Catete, 1897-1960” (Agir, 296 páginas).
A imprensa às vezes tratava Rodrigues Alves de maneira contundente, inclusive apelidando-o de “Soneca”. Não há notícia de que tenha perseguido jornalista ou falado palavrões a algum deles. “Dizia-se até que recortava e guardava as caricaturas e as sátiras publicadas na imprensa”, escreve Fernando Figueiredo. Culto, era amigo de poetas, como Olavo Bilac. Ao deixar o governo, saiu aplaudido pela população do Rio de Janeiro e sendo chamado de “Papai Grande lá do Catete”.
No governo de Rodrigues Alves, ocorreram a Revolta da Vacina, em 1904, e a sublevação da Escola Militar da Praia Vermelha.
Chegaram a aconselhá-lo a fugir do palácio. Mas Rodrigues Alves, pequeno e franzino, decidiu ficar e enfrentar a situação. “O saldo da tentativa de deposição do presidente teve três mortes, incluindo a do general Silvestre Travassos, líder e articulador da ofensiva ao Palácio do Catete.” A oposição articulou uma campanha suicida contra a vacinação em massa para combater a varíola. O governo acabou revogando a vacinação obrigatória. O médico Oswaldo Cruz era o principal responsável pela vacinação, isto, é, por salvar vidas.
Com passagem pelo Instituto Pasteur, na França, o médico sanitarista recebeu a incumbência de cuidar do saneamento do Rio de Janeiro. A capital era apresentada no exterior como “túmulo dos estrangeiros”, por causa das epidemias “incontroláveis”.
Oswaldo Cruz decidiu combater, de cara, a febre amarela e a peste bubônica. O governo articulou equipes de caçadores de ratos. Chegou-se a pagar quem matasse ratos, hospedeiros de pulgas que transmitiam a peste.
“Para eliminar o mosquito transmissor da febre amarela, milhares de pessoas foram mobilizadas, além de uma intensa e extensa higienização em áreas mais povoadas, especialmente em casas no centro da cidade, onde o problema era mais crítico. Construções sem condições de salubridade ou sem licença foram interditadas, e os enfermos identificados logo eram encaminhados e isolados em hospitais. Por ser invasiva e, assim, muitas vezes provocar resistência da população, toda ação tinha acompanhamento da polícia, que escoltava as equipes médicas onde quer que fossem”, relata Fernando Figueiredo.
Em 1904, a varíola matou 4 mil pessoas. Por isso o governo de Rodrigues Alves tornou a vacina obrigatória. Mas políticos, como o senador Lauro Sodré e o deputado Barbosa Lima, ligados ao Exército, fizeram uma campanha irracionalista insuflando a população contra a campanha. Ruy Barbosa também atacou a orientação de Oswaldo Cruz. O historiador Nicolau Sevcenko, autor do livro “A Revolta da Vacina”, escreveu que o governo não soube preparar, “psicologicamente”, as pessoas. Lima Barreto acompanhou a revolta de populares. “O motim não tem fisionomia, não tem forma, é improvisado”, realçou.
Pacificado o país, Rodrigues Alves pôs-se a implementar seu programa de modernização. Manteve as finanças estabilizadas, mas incentivou o crescimento econômico. Começou por uma ampla reurbanização do Rio de Janeiro. Expandiu as ferrovias e incentivou a imigração.
Pereira Passos, engenheiro e prefeito do Rio de Janeiro, começou, bancado por Rodrigues Alves, uma ampla reformatação da arquitetura urbana da cidade. Admirador do barão (George-Eugène) Haussmann, Pereira Passos não hesitou ao tocar a reforma urbana. O engenheiro Lauro Müller, ministro da Viação, responsabilizou-se pela modernização do porto. “O engenheiro Paulo de Frontin “comandou dois grandes canteiros de obras na abertura das avenidas Central (atual Rio Branco) e do Cais (hoje Rodrigues Alves)”, informa Fernando Figueiredo.
Há políticos que sugerem que investir em saneamento, sobretudo esgoto, não funciona em termos eleitorais. Porque as obras, embora fundamentais para a saúde pública, “não são vistas” (ficam embaixo da terra) pelos eleitores. Rodrigues Alves pensava diferente: e investiu pesado em urbanização e saneamento
Mas houve reações contra a política do “bota-abaixo”, “que”, pontua Fernando Figueiredo, “demolia casebres para abrir espaço a edifícios imponentes. A maneira arbitrária com que as reformas foram impostas ferveu o caldeirão social”. Por ser um gestor decidido, incontornável nas duas decisões, Pereira Passos passou a ser chamado de “ditador”. O jurista Ruy Barbosa criticou-o acidamente.
Fernando Figueiredo postula que o balanço da gestão de Rodrigues Alves, com o apoio de Pereira Passos, foi positivo para o Rio de Janeiro, a capital do país. “Não é exagero dizer que há um Rio de Janeiro antes e depois de Rodrigues Alves”, sublinha.
A gestão de Pereira Passos criou novas avenidas, como a Mem de Sá, Salvador de Sá, Gomes Freire, Passos, Beira-Mar, Atlântica, e alargou outras. Reconstruiu o cais Pharoux e dos Mineiros. Edificou o Teatro Municipal, a Escola de Belas Artes, a Biblioteca Nacional.
Em termos de economia, Rodrigues Alves enfrentou a crise da queda dos preços do café para exportação, provocada pela superprodução. Alexandre Siciliano articulou um plano de valorização do café, porque não havia recursos suficientes. Produtores de café, com o apoio de governadores de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, articularam, à revelia do presidente da República, o Convênio de Taubaté. Os cofres dos três Estados seriam “sangrados” para beneficiar os produtores de café. Os governos estaduais pediram um empréstimo de 15 milhões de libras esterlinas — criando, por assim dizer, uma Estado do Bem-Estar Social para os fazendeiros do café, salvando-os da bancarrota.
Com o dinheiro dos ingleses, os governadores de São Paulo, Rio e Minas “compraram o café excedente e retiraram o produto do mercado, de modo a pressionar para cima a cotação internacional”. O Estado pagava o pato dos problemas da iniciativa privada.
O presidente seguinte, Afonso Pena, ratificou o Convênio de Taubaté, beneficiando os produtores de café.
A política exterior de Rodrigues Pena, operada pelo Barão do Rio Branco (José Maria da Silva Paranhos Jr.), foi bem-sucedida. Pelo Tratado de Petrópolis, assinado com a Bolívia, o Brasil anexou o Acre. O governo brasileiro pagou 2 milhões de libras esterlinas aos bolivianos.
O barão do Rio Branco criou a primeira embaixada do Brasil, em Washington, Estados Unidos. O embaixador Joaquim Nabuco, conhecido como Quincas o Belo, foi convidado para chefiá-la.
Faculdade de Medicina e gripe espanhola
Aos 64 anos, Rodrigues Alves despijamou-se e foi eleito para o governo de São Paulo. Era seu terceiro mandato como presidente da província. Sua gestão valorizou o café e construiu a ponte sobre o Rio Tietê em Barra Bonita e restaurou a rodovia Caminho do Mar.
Em 1912, Rodrigues Alves, um aficionado da ideia de que investir em educação era levar ao crescimento econômico e ao desenvolvimento, criou a Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, parte da USP desde 1934.
O Partido Republicano Paulista (PRP) bancou-o para o Senado, em 1916. Seguindo o acordo da política do café com leite, Rodrigues Alves, de São Paulo, é lançado para a Presidência da República, com o mineiro Delfim Moreira na vice.
Rodrigues Alves foi eleito — até homologado — com uma votação extraordinária. Seu rival, Nilo Peçanha, do Rio de Janeiro, obteve menos de 1% dos votos.
Mas havia uma gripe no meio do caminho. Em 1918, a gripe espanhola assolou o Brasil. Uma de suas vítimas foi Rodrigues Alves, de 70 anos e “que tinha a saúde vulnerável”, registra Fernando Figueiredo. “À beira da morte, Rodrigues Alves não voltaria ao Palácio do Catete. O vice Delfim Moreira assumiu. (…) Rodrigues Alves morreu na madrugada de 16 de janeiro de 1919, no Rio de Janeiro. Ironicamente, o homem mais identificado com a erradicação de epidemias sucumbiu à gripe”, anota Fernando Figueiredo.
Rodrigues Alves Filho contou, no livro “Retratos de Família”: “Nas vésperas de morrer, [Rodrigues Alves] mandou chamar os médicos que o assistiam, os drs. Miguel Couto, Matias Valadão e Leitão da Cunha. Despediu-se de cada um apertando-lhe a mão e agradecendo-lhes a atenção que [lhe] dispensaram (…). Depois, recebeu o padre confessor. E morre em paz de espírito e coração”.
Um presidente que respeitava a liberdade de imprensa
Políticos de vocação autoritária tendem a tratar a imprensa como “inimiga”, portanto passam a depreciá-la. O fenômeno não é novo e está sempre ressurgindo. O filósofo britânico John Gray postula que a ideia de “progresso” — de avanço contínuo — é ilusória. A história é, de fato, feita de avanços, mas também de recuos. O presidente Rodrigues Alves era firme, mas, democrata, não perseguia a imprensa nem atacava jornalistas.
Como foi deputado, senador e ministro da Fazenda, Rodrigues Alves era criticado antes mesmo de se tornar presidente. Como era um homem espartano, reservado, pouco dado à vida social, parecia enfadado e chato. Por isso o baixinho cordial e nada atlético ganhou o apelido de “Soneca”. A rigor, de “soneca”, não tinha nada. Era um gestor decidido e realizador. Só não apreciava perder tempo com conversas inúteis e picuinhas.
“Rodrigues Alves era apresentado em caricaturas e desenhos em poses e situações ingratas, a se espreguiçar, a despertar às dez da manhã, sempre trajando roupas de dormir”, relata Fernando Figueiredo.
O caricaturista Raul Pederneiras satirizou-o: “O primeiro presidente tinha a pedra no sapato/ o segundo tinha uma energia de pedra/ o terceiro tinha a pedra na barriga/ o quarto (minguante) tinha a pedra no Silvestre/ E até o futuro presidente tem um sono de pedra”. O “futuro”, no caso, é Rodrigues Alves.
A revista ilustrada “O Malho” publicou que Rodrigues Alves “nasceu dormindo e dormiu a vida inteira, no colégio, na faculdade, na Câmara, no Ministério, no Senado e no governo de São Paulo”.
Rodrigues Alves ficava com “raiva”? É provável que considerasse que alguns veículos excedessem nas críticas, mas optou por não respondê-los nem processá-los. Ele mantinha relacionamento cordial com repórteres, editores e proprietários de jornais e revistas. Consta que, desenhado com uma aparência muito feia — não era nenhum Paul Newman ou Alain Delon —, reclamou ao chargista. Nas charges seguintes, a imagem melhorou um pouco.
Em fevereiro de 1903, ao perceber que o presidente era um democrata, “O Malho” publicou: “Uma coisa precisa registrar a crônica do carnaval, com os aplausos calorosos do cronista: a prova de espírito de tolerância dada pelo governo — ou, antes, pelo chefe do Estado — permitindo que saíssem num préstito a figura do mesmo chefe do Estado a dormir a sua soneca ao lado da República. O dr. Rodrigues Alves lavrou dois tentos com esse simpático procedimento”. O riso é a única arma, se arma é, contra o humor.
O Rio de Janeiro passou a ser conhecido como Cidade Maravilhosa, sugere Fernando Figueiredo, devido às reformas protagonizadas por Rodrigues Alves e Pereira Passos.
Rodrigues Alves tinha oito filhos e não aderiu à prática do nepotismo
A história do Brasil é variada. Há presidentes da República que nomeiam parentes para vários cargos. Há quem conte que um presidente só não nomeou Sir Totó Ney, seu nobre cachorro de estimação, porque latia muito e fazia xixi na perna dos visitantes. Há presidente que, mesmo não nomeando, banca a candidatura de três filhos — criando não os “quatro” mosqueteiros, mas os quatro cavaleiros do Apocalipse. Do Armagedom. O presidente Rodrigues Alves era bem diferente, e não tinha apreço por nepotismo nem por impor seus filhos na política.
Oscar Rodrigues Alves, filho do presidente, havia sido indicado para ocupar uma vaga na Câmara dos Deputados de São Paulo. Entraria na vaga de um político que havia sido eleito para o Senado. A indicação não esbarrava na lei, portanto era plenamente legal. Mas, como presidente de São Paulo, Rodrigues Alves pensava diferente e escreveu uma carta explicando seus motivos: “No 3º distrito já havia um sobrinho, filho do meu mano Antônio, e a apresentação de outro parente escandalizaria a opinião, sendo eu presidente do Estado. Acrescia que meu filho Francisco, atualmente deputado federal, não poderia apresentar-se nas próximas eleições gerais, pelo fato de ser filho do presidente. No dia imediato teleagrafei ao dr. Rubião nestes termos: ‘Por motivos de ordem pessoal e política, não pode meu filho, no atual momento, aceitar a honrosa indicação para a eleição do dia 13. Peço aos amigos da comissão, como especial atenção, que seja o seu nome substituído’. Felizmente, meu filho, pensando do mesmo modo, telegrafou ao vice-presidente do Estado, dizendo que eu achava inconveniente a sua candidatura e pedindo que fosse o seu nome substituído”.
Numa carta ao senador Tomás Delfino, Rodrigues Alves escreve: “A nossa educação política é muito fraca e o personalismo, a vaidade e o aferro a pequenos interesses de zona não deixam que o espírito dos homens políticos se eleve à altura dos grandes interesses nacionais, além de que o imprevisto entra por essas e outras razões na marcha e solução dos maiores acontecimentos”.