Os crocs são tamancos de plástico confortáveis, mas horrorosos. É uma gourmetização da feiura. Se isso foi possível, por que não gourmetizar uma desgraça? É o que estão fazendo com a quarentena imposta pelo Coronavírus. Quem fica preso em casa passando álcool gel até no duodeno agora é “quarentener”. Bacana, não?
Celebridades já estão usando o termo. “Sextou, quarenteners?” perguntam alguns. E postam fotos do isolamento, geralmente em uma varanda da Barra da Tijuca. Madonna postou um vídeo em que se banha numa banheira com leite e rosas. É mais divertido ficar em casa quando se mora em um triplex. Mas quem mora em quitinete não deve estar achando tão divertido. Aliás, não é mais quitinete. É “studio”. Porque já gourmetizaram o aperto.
Precisamos impor um limite. Gourmetizar brigadeiro e cachaça até dá pra aguentar. Mas gourmetizar pandemia é demais. Não dá para encarar esse isolamento obrigatório e necessário como um período sabático, como se a humanidade toda estivesse indo espontaneamente para um spa. Não é um momento de “iluminação”, “reflexão” e “ai que vontade de abraçar uma árvore”. É questão de sobrevivência.
Aliás, duvido que todos aproveitem para ler os livros que esqueceram de ler, ver os filmes que ainda não viram e, uau, que tal começar um curso de matelassê online? Não vai rolar. O mundo vai preferir inundar o WhatsApp com memes. O meu praticamente virou uma Veneza.
Nós todos vimos, embevecidos, os vídeos com italianos cantando nas varandas para animar uns aos outros durante o isolamento. Torço para que isso ocorra aqui. Mas, não sei, acho mais provável que o povo use as janelas só pra xingar uns aos outros de bolsominion e petralha, misturando pandemia com polarização. Porque, você sabe, pandemia ou é coisa de capitalista. Ou de comunista. Você escolhe.
Aceitem isso, mas o que separa o humano civilizado de um bárbaro é apenas a quantidade de comida na geladeira. Ou a qualidade da banda larga em casa. Operadoras já estão preocupadas com aumento de consumo de internet, que subiu 40%. Sem Netflix não tem civilização que aguente. É preciso encarar a situação como ela é: difícil, dolorosa. Os franceses que tiveram suas terras invadidas por vikings não ficavam nessa de “Olha, por outro lado eles são ótimos construtores de barcos!”. Eles fugiam ou lutavam. Invasão não tem “lado bom”. Pandemia também não tem.
Por isso, aceitemos: é importante defender o isolamento, mas não precisa purpurinar a coisa. Isolamento nem sempre acaba bem. Em “O Anjo Exterminador”, filme dirigido por Luis Buñuel, um grupo de grã-finos fica preso na sala de uma mansão. Por mais chiques que eles sejam, tudo acaba em caos. Gosto de filmes espanhóis, mas não quero viver em um deles. Mesmo que seja um filme do Almodóvar. As mulheres são muito narigudas nos filmes dele. E, céus, pensem bem: estamos no Brasil. O filme pode ser dirigido pelo Cacá Diegues, quem quer isso?
É mais provável que o nosso lado mais mesquinho apareça cedo ou tarde. Aliás, já está aparecendo. É o caso do empresário de uma rede de restaurantes que afirmou que o “Brasil não pode parar por 5 ou 7 mil que vão morrer”. Claro, desde que não seja eu que morra, a roda tem que girar. E a pizza tem que chegar em 20 minutos, senão vamos todos xingar muito no Twitter.
Não adianta ficar aí se gabando “sou jovem, o corona só mata velhos e doentes”. Seu apartamento não é uma Arca de Noé para você maratonar “Game of Thrones” enquanto os outros morrem. Torça para você não ficar doente no seu santuário de meditação. Porque com hospitais lotados, talvez você morra junto com os outros que ficaram fora do seu apê com Smart TV.
O vírus não traz uma lição de vida. Não traz uma oportunidade de reencontrar o nosso lado mais humano. Traz apenas uma necessidade: sobreviver. É o que todo mundo quer fazer. Tente bolar algo produtivo no isolamento e mantenha a sanidade. Vai passar. Mas, por favor, não piore essa quarentena com seu discurso de coach motivacional. Porque, desculpa aí, mas quarentener é a mãe.