Enquanto o mundo se pergunta incessantemente “Como será amanhã?” depois do Covid-19, Liz, minha filha de dois anos e meio, quer brincar de fazer música. A primeira composição dela foi “O Bolt faz au, au, au, peeelaaaa cidade.” Coincidência? Não. É que ela não tem encontrado com o cachorro da vizinha pois o passeio matinal na pracinha foi suspenso. Interessante o modo como as crianças percebem as situações. No mais, ela segue intrigada com o papel das letras e adora achar as dos seu nome em tudo que vê. Apesar de mais restritas as brincadeiras, Liz está bem. A maior implicação do isolamento social para ela é não encontrar com a vovó. Criança de casa grande tem essa sorte. Já eu ando em quarentena de mim em uma senzala domiciliar.
É que as mulheres são triplamente afetadas pelo isolamento social. Primeiramente, temos que fazer trabalho remoto e doméstico com os filhos no pescoço digitando palavras inventadas no e-mail do chefe ou mandando fotos de nada nos grupos de trabalho. Este texto, por exemplo, levou cinco dias para ser feito. Normalmente gasto três horas. Sim, é natural os pequenos demandarem mais da mãe. Mas muitos pais se esquivam de compartilhar as responsabilidades alegando que o filho é mesmo da mãe. Filhos da mãe, esses. Isso sim! Que fique bem claro: os homens só conseguem colocar o emprego em primeiro lugar porque contam com nossa flexibilidade imposta pelas circunstâncias. Chamemos assim para não perder o foco das nuances da quarentena nestes escritos.
O lavar, passar e cozinhar, raramente divididos igualmente e eternos provocadores de discórdia, estão maiores por demandas sanitárias e a presença 24 horas nos lares. Muitas famílias estão sem o suporte na limpeza porque todos precisam de isolamento. Nossos companheiros também estão desafiados a produzirem em casa. Tem hora que acredito que os homens têm tolerância maior ao caos. É certo que muitas de nós são loucas da organização e não suportam nenhum palito fora do lugar. Sinto isso quando estou deslocada do meu eixo. Entendo. Mas reconheço que precisamos deixar a casa cair às vezes. Quem sabe assim, a roda gira mais igualitariamente?
Outra circunstância que tenho percebido é a educação virtual. Defendo o fechamento de escolas pela segurança de todos com o pagamento, ainda que parcial, da mensalidade, pois também é preciso pensar na manutenção básica da escola e dos profissionais que ali trabalham durante a pandemia. Não tenho demanda de tarefas virtuais para Liz. Além dela detestar, não estou qualificada para tal e me falta energia para seguir um cronograma educativo planejado. Para ser bem honesta, tudo o que não preciso é ser professora ou educadora física pois já estou demasiadamente esgotada. Então, por aqui, seguimos com brincadeiras que podem até ensinar.
Por fim, o mais desolador dos impactos — nunca exclusivos do gênero — mas potencialmente grave no universo íntimo feminino: onde habitará nossa identidade durante o confinamento? Há duas semanas não saímos de casa. Vivemos a peculiaridade de estarmos isolados em cinco pois moramos com meu pai, de 62 anos e minha avó de 90, acamada, que se recupera de uma cirurgia conosco. Temos um hospital montado na sala e é constante o entra e sai de profissionais de saúde. Não podemos vacilar na desinfecção. Os horários de alimentação não podem ser descumpridos. Fabrício, meu marido, está em home office e tem muitos prazos a cumprir. Ele se esforça para colaborar. Muitas vezes, não consegue. Outras, eu não deixo. Ando oca. Todos os dias parecem iguais. Acordo e durmo cumprindo tarefas: Liz, trabalho, casa, familiares. Preciso me esforçar para saber a data ou o dia da semana. Tenho uma série de atividades sem terminar: um texto, um livro, um choro, um suspiro, um sonho… Eu me sinto com a existência suspensa em um loop vazio. Tudo em mim, precisa esperar. E realmente não sei o que esperar de mim nisso tudo. Pelo apreço à esperança, invoco outra vez Simone: “Como será amanhã? Responda quem puder. O que irá me acontecer? O meu destino será como Deus quiser. Como será? Como será?”.