Ela veio de longe. Chegou caminhando firme, segura, decidida. Trazia em sua bagagem os mistérios do céu e da terra, os códigos secretos, os novos mandamentos, as fórmulas dos alquimistas reveladas. E os entregaria à primeira pessoa que se mostrasse capaz de pequenos gestos de grandeza, demonstrações simples de cuidado com o outro, meras amostras de humanidade e ternura.
Era um anjo em forma de moça, enviado das altas esferas ao seio do nosso convívio terreno. Sua missão era muito simples. Polvilhar de poesia divina o nosso bolo humano crescido nas obrigações diárias, confeitado sem grandes cuidados por mãos grossas de pressa e desilusão, como em velhas e empoeiradas padarias de rodoviária.
Andando no contrafluxo de uma larga e movimentada calçada, ela desviava aqui e ali de apressados pedestres, enquanto observava a correria competitiva dos carros nas ruas, as ultrapassagens raivosas, as buzinas ofensivas, os gestos obscenos, as guimbas de cigarro e garrafas de plástico vazias que os motoristas lançavam fora pela janela sem tirar os olhos do tráfego, os avanços sob o sinal vermelho e outras desobediências públicas.
De repente, alguém na faixa da direita pisa de leve no freio e permite que o veículo de um desconhecido tome a sua frente. O anjo reconhece ali um pequeno milagre, obra de alguém tomado por um sentimento bom, e sai voando invisível até a sua companhia.
Era um homem comum. O anjo se senta a seu lado e o observa. Dali em diante, a moça que veio do céu acompanharia seus passos, assistiria silenciosa e despercebida a todas as suas ações. E se realmente constatasse estar diante de uma pessoa boa, daria a ele com absoluta legitimidade um presente divino: todo o conhecimento que ela trazia sob suas asas.
Ao homem comum seria atribuída a missão de distribuir aos outros o que o anjo lhe ensinasse, ajudando assim, aos goles, a hidratar um mundo ressequido pela maldade de toda sorte. Ele, o sujeito capaz de permitir uma simples ultrapassagem no trânsito embrutecido, foi escolhido por um anjo sensível, que entre nós decidiu adotar a forma de uma mulher, para nos salvar da burrice, da crueldade e da idiotia.
Cada instante caminhando ao lado do homem enchia o anjo de nova esperança. O escolhido era a gentileza em pessoa. Conversava francamente com todos sem distinção de sexo, cor, escolaridade, conta bancária, gosto musical. Aceitava com humor as provocações de seus colegas torcedores do time adversário. Fazia seu trabalho diário com empenho e honestidade. Mirava sorrindo, cheio de amor, a foto de sua família sobre a mesa, ao lado do chiclete, da garrafa d´água, da chave do carro.
No caminho para o almoço com a turma do escritório, dava esmolas a quem lhe pedisse, e na volta à lida fazia dois telefonemas: o primeiro para casa, a fim de falar com os dois filhos adolescentes, saber se tudo ia bem, lembrar da comida do cachorro, cobrar-lhes o dever da escola, e o segundo para o trabalho da mulher, que nem sempre o atendia, executiva atarefada que era.
O anjo passou sete dias espreitando o homem em toda a sua boa vontade. Acompanhou com método e cuidado sua volta do trabalho, o jeito amoroso de beijar a mulher e os filhos, a verdade de sua festa diária com o cachorro. Assistiu, agitando as asas de encantamento, a sete jantares de sua família. Eles comiam juntos, à mesa, todas as noites, mais ou menos à mesma hora. O pai, a mãe e os dois filhos meninos.
Com um pouco de imaginação, ao anjo era possível até perceber no olhar manso daquelas pessoas um feitio de oração. Um agradecimento silencioso pelo pão e a carne, o suco da mãe e do pai, o guaraná das crianças, a ração do animal. Eles deixavam a mesa antes da novela e seguiam juntos até a frente da TV, onde ficavam até o fim do capítulo. Depois rumavam cada um a seu canto da casa, a seus afazeres de família boa. Os meninos jogavam videogame no quarto, o pai e a mãe faziam contas, pagavam boletos, liam qualquer coisa, falavam amenidades até a hora em que a vida mergulhava no silêncio da noite e do sono tranquilo, à espera do dia seguinte e do tudo outra vez.
Ao fim do sétimo dia, o anjo assumiu novamente sua forma de mulher jovem, bonita, disposta. Tomou suas anotações da semana e parou em frente ao portão do escolhido. Era domingo de manhã, hora de revelar a ele alguns segredos especiais do universo e esperá-lo fazer o bom uso de sempre, distribuindo amor e bons modos a quem encontrasse.
O anjo ficou ali, no portão, orgulhosa de sua escolha, ouvindo a família acordar animada para a vida que recomeça no primeiro dia da semana. Escutou seus sons de animação em torneiras que abrem e fecham, televisões trocando de canal, cadeiras arrastando, louça batendo na pia, risos altos, francos latidos.
Ela respirou fundo um perfume de pão e café uma última vez e tocou a campainha. Um toque só. Gentil e direto como convém a um anjo. Nada. Então ela tocou de novo. A casa ficou muda de repente.
O homem bom saiu na janela da sala e olhou desconfiado a moça que ali estava. Ela sorriu o céu azul e falou a ele com a calma da brisa mais suave:
— Bom dia! Posso falar com você um instante?
Silêncio. Insegurança. Estranhamento. E uma resposta seca como a terra sem água.
— Falar comigo? Sobre o quê?
— Eu tenho umas coisas importantes pra dizer a você.
— Que coisas? Da parte de quem?
— Se você me deixar entrar, eu explico melhor.
— Hoje, não. Obrigado.
Sem fechar a janela, o homem voltou a seus afazeres de domingo. Do portão, o anjo ouviu a mulher perguntar ao marido na sala:
— Quem era?
E ele respondeu direto, com a verdade impensada dos homens:
— Testemunha de Jeová.
Ilustração: Mary Jane Ansell