Fotografia: Tomaz Silva/Agência Brasil
Dentre as liberdades previstas como direitos fundamentais na Constituição brasileira, a de manifestação talvez seja uma das mais importantes. Permitir ao povo que se reúna para protestar sobre abusos, reclamar direitos, expor injustiças ou apoiar acontecimentos é sinal do funcionamento pleno de uma democracia. Mas que as pessoas desfrutem desse direito saindo às ruas para pedir um novo AI-5, o fechamento do Congresso ou do Supremo Tribunal Federal é, mais do que ignorância histórica, um patente atentado contra suas próprias liberdades. Infelizmente, no momento o país assiste atônito ao crescimento dessas conjecturas. Celebra-se a estupidez orgulhosa como se ela fosse a salvação.
Do ponto de vista qualitativo, o direito de reunião em locais públicos para manifestações populares denota um nível elevado de robustez democrática. Expor as mazelas sociais, denunciar as omissões das autoridades ou descalabros diversos são deveres de todo cidadão que deseje uma gestão eficiente, pautada na prevalência do interesse público. Por isso é comum que a população saia às ruas agitando bandeiras pelo fim da corrupção ou por melhorias na educação e na saúde. Nada mais natural e compreensível, principalmente se tratando de um país tão desigual como o Brasil. Até aí, nada alarmante.
O que realmente chama a atenção é quando uma determinada parcela da população manifesta desejos nitidamente antidemocráticos e prejudiciais à estabilidade institucional do país. Convictos de que a soberania popular — que pauta o poder do povo para o povo — deveria proteger seus interesses mesquinhos, esse considerável nicho social cria um conceito próprio e deturpado de democracia, no qual os poderes seriam reunidos nas mãos de um ídolo salvador. Em consequência, há uma “demonização” de instituições como a Suprema Corte e o Congresso Nacional, tidos como inimigos da população. Por trás desse tipo de pensamento simplista e simplório, esconde-se uma sádica vontade de voltar aos tempos sombrios do regime militar.
Nada explica melhor esse naipe de movimento que a cegueira do fanatismo. Ao mirar em dias melhores e ao mesmo tempo desejar um ato institucional que as prive de suas próprias liberdades, as pessoas que assim pensam entram em um paradoxo automutilatório, no qual elas seriam as próprias vítimas dos malefícios provenientes da realização de seus desejos. A história, como se sabe, é cíclica nesse sentido, e na nossa não faltam períodos que deveriam funcionar como lições para jamais repeti-la. Por isso é fundamental ter a noção de que não existem soluções mágicas nem heróis redentores que vão (re)colocar o Brasil nos trilhos do triunfo. Acreditar nessa utopia é de uma ingenuidade limítrofe da infantilidade.
Nossa realidade às vezes parece mesmo um conto naturalista dos mais escabrosos. A princípio um pequeno grupo, indesejado em manifestações políticas, os que desejam um “autogolpe” hoje já não mais precisam se esconder. Caminham tranquilamente pelas ruas, ostentando faixas lamentáveis, causando sentimentos antagônicos de espanto, repúdio e pena. O AI-5 de 1968 marcou o período de chumbo da ditadura. A censura, o exílio, a tortura, a perda compulsória de mandatos e tantas outras atrocidades ocorreram justamente nesse período. Ao mesmo tempo, fechar o Congresso significaria eliminar as eleições diretas. Ter saudades dessa época é desconhecer a própria história, ignorar os próprios direitos e flertar com uma ditadura por puro revanchismo inconsequente.
No naturalismo presente no romance-tese “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo, há uma animalização dos personagens em contraposição a uma humanização do local de moradias. O cortiço seria um organismo dotado de vida, porque as pessoas ali se mostram desnudas em um realismo exacerbado que denota o que nelas há de pior. Os aspectos negativos são valorizados em uma perspectiva determinista bastante tormentosa. Ao se analisar a conjuntura de pedidos contidos nas faixas de algumas manifestações ocorridas no país, o sentimento é de se estar vivenciando exatamente uma experiência naturalista em tempo real, em uma realidade crua e desanimadora.
Ainda que existam problemas reais no Congresso e críticas merecidas ao STF, fechá-los não é uma solução democrática. Uma sociedade que se preze como pluralista deve se orientar, sim, pelos postulados da soberania popular, desde que suas vontades sejam em benefício de todos — e não em seu prejuízo. O direito à manifestação nas ruas, independente de suas pautas, é pilar de uma comunidade consciente. Porém entoar chavões enamorados de preceitos ditatoriais e que pretendam conceder poderes supremos a um ser falível é caminhar a passos largos para o retrocesso — se não para o abismo.
Não nos enganemos: uma democracia pode começar a desmoronar a partir da ressonância das opiniões de alguns lunáticos. E ficar atento a isso é, antes de tudo, uma defesa de nossa própria existência.