Se um dia eu morrer, me enterrem com aquele terno de grife que o Dalai Lama me deu

Se um dia eu morrer, me enterrem com aquele terno de grife que o Dalai Lama me deu

Coincidências acontecem o tempo todo. Por exemplo: hoje, eu não quero escrever; hoje, vocês não querem ler. Pronto. Estamos empatados. Viram? Simples assim. Acontece. Por sinal, as coincidências sucedem de tal forma que muita gente debita os ocorreres do acaso a uma espécie de predileção divina, como se os deuses estivessem se divertindo ao nos ferrarem ou, ao contrário, como se eles realmente se interessassem pelos nossos ais. Ora, haja paciência e carneiros no céu! Aquilo ali em cima é apenas uma nuvem em movimento, seus tolos! Está comprovado: os raios e os IDH pífios (Índices de Desenvolvimento Humano) podem cair, sim, nos mesmos lugares. Ou seja, a eletricidade, a estatística, o espiritismo e a pobreza de espírito explicam um quase tudo nessa vida.

Que contradição: era um dia de verão, mas chovia à beça na Cidade Perdida. Uma balzaquiana dirigia o seu fusca cor de tétano pelo Elevado da Amargura, visivelmente emocionada ao ouvir a Janis Joplin cantando “Mercedes-Benz” à capela, quando uma Land Rover que seguia a sua frente freou bruscamente e… pimba! Colidiriam. Onde estará a coincidência na história, vocês certamente quererão saber.

Começa assim a coisa: ambos seguiam pela mesma avenida — o famoso Elevado da Amargura, badalado point de encontro de suicidas inveterados — sob uma impensável chuva matinal cujas gotas resplandeciam ao sol, às dez da matina, e sem saberem exatamente as suas vidas aonde é que iam dar (acho que já li essas palavras nalgum lugar). Por fim, para forçar as evidências, ambos ouviam música: a moçoila do fusquinha enferrujado adorava a voz rouca-catarral da Janis Joplin; o casal de almofadinhas, o pior de Sullivan & Massadas.

Apesar do susto, a mulher do fusquinha desandou a rir feito uma louca. As portas da Land Rover se abriram e de lá saltou um casal enfurecido que devia somar 100 anos (ele, 75; ela, 25). O sujeito — homenzarrão claudicante na senectude — era um marombeiro veterano deveras combalido, embora ainda sopitasse Deca Durabolin pelos poros. Compreendam o perfil do velhote: ele levava um Tag Heuer em cada pulso, vestia um impecável conjuntinho da Abercrombie & Fitch para adolescentes, assistia ao mundo através de um Ray Ban Aviador socado no meio da fuça, e calçava um par de botas-pra-pisar-em-bosta da Dolce & Gabbana, confeccionadas com o legítimo couro de mandruvá canadense.

Sua acompanhante era uma jovem estúpida que, por mero acaso, carregava nas entranhas um coró pregado à placenta. Tinha uma tatuagem do Santo Graal numa das virilhas, e um feioso buquê de verrugas vulgares crescia escandalosamente nos arredores da genitália, a despeito do sacerdotal ofício de um ginecologista trazido da Suíça pelo Programa Mais Milhas. Acompanhem a descrição da safadinha: ela desfilava o corpinho esculpido por cupins de aventais brancos; tinha um vestidinho Prada colado à carcaça, com silhueta de jiboia-que-engoliu-capivara; calçava um altíssimo par de ferraduras Louis Vuitton que dava nos homens uma vontade danada trepar, ainda que ela fosse casada e prenhe de onze meses. Na cara embatumada com bisnagas de Victoria’s Secret exibia um Armani Exchange para cegos que se equilibrava no narizinho arrebitado, o qual fora talhado a bisturi pelo renomado (e procurado pela Interpol) Doctor Robin Wood, da Clinica Plastic Ono Band, em Beverly Hills (adendo certamente prolixo e desnecessário: eu li no “The New York Post” que o charlatão roubava dos ricaços da Sunset Boulevard, e dava para os pobres michês da Madman County com a Blue Hole Street).

Pressentindo que seria morta, a moçoila se animou e não apenas desejou que o seu fusca falasse, mas que ele contasse a todo mundo que a hora dela tinha chegado, graças a Deus, pois o casal de engomadinhos dela se aproximava com clara disposição nazista. O velhote espumava Sal Eno pela boca, pois, embora fosse quase um inválido, com muito custo conseguira reunir economias e trazer aquele colossal veículo camuflado dentro de um container de lençóis hospitalares sujos importados do Reino Unido. Tudo isso, pra quê?! Para que a sua impressionante picape contrabandeada fosse abalroada por um carro velho caindo aos pedaços. O rude homenzarrão — que cheirava a Paco Rabanne e fraldão geriátrico sabor ureia da Johnson & Johnson — pisou num delicado estrume de Bichon Frisé que jazia incólume, desatento na sarjeta, e sacou a sua indelével Smith & Wesson 9 mm com a qual pretendia encerrar aquela conversa que sequer começara.

Destemido como Chuck Norris no auge da matança, o brutamontes empedernido puxou a moça do fusca démodé pelo colarinho e fez com que ela rezasse de joelhos no asfalto quente a Ave Maria de Schubert na versão Libras do Padre Marcelo. No seu ponto de vista, ela até que teve sorte: além de ser uma mulher linda de morrer (porém, com indisfarçável vivacidade suicida), a moça era mais ateia que um pé de boldo e, por mais que tentasse, não se lembrava de nenhuma ladainha religiosa ensinada nos tempos de colégio pelo Frei Damiane, um dos mais promissores pedófilos da paróquia naquela época. Ela presumiu que aquilo tudo acabaria em merda, do jeito que ela sempre tinha sonhado. Então, tratou de ficar calada. Se não ia rezar, também não ia se retratar porcaria nenhuma.

Enquanto esperava a morte chegar — exposta ao preconceituoso jugo de Bonnie & Clyde do cerrado — a gracinha do fusqueta sofreu aquele comuníssimo fenômeno que assola as pessoas na hora capital: “Vi a vida passando inteirinha a minha frente, como se fosse um filme” — ela teria dito para mim, caso não fosse atingida por um raio (e olha que os raios são raríssimos no verão) que a tudo e a todos matou, inclusive essa história, numa canetada só.

 

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.