Gabriel García Márquez disse numa entrevista que se baseou em fatos ocorridos por volta de 1951, em Sucre, na Colômbia, para escrever a sua história de vingança. O enredo talvez seja o que menos importa, no livro e no filme, e pode ser resumido em poucas linhas: em Riohacha, uma pequena comunidade, Santiago é assassinado com uma faca em frente à sua casa, mas o fato não causa comoção nem surpreende ninguém. Com exceção da vítima, todos sabiam que iria acontecer. Os irmãos Pedro e Pablo Vicario já tinham dito que iriam matá-lo de qualquer jeito, cedo ou tarde, por causa da honra perdida da irmã, uma dessas fatalidades de sangue originada em um preconceito e que ainda ocorre nos grotões latino-americanos, sejam colombianos, brasileiros ou andinos.
“No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5 e 30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo.” A primeira frase da novela carrega o leitor diretamente para o clima de estranhamento da história, mas o que impressiona de fato é a capacidade narrativa do autor ao descrever o clima opressor que paira sobre a cidade e a certeza de que nada, ninguém, força alguma, poderia evitar o desfecho trágico, machista e absurdo. Afeito às adaptações literárias, o napolitano Francesco Rosi já havia realizado ao menos três clássicos antes: “O Bandido Giuliano” (1962), “As Mãos Sobre a Cidade” (1963, pelo qual recebeu o Leão de Ouro em Veneza) e “O Caso Mattei” (1972). Não bastava para ele, que em 1997 realizou a proeza de filmar “A Trégua”, romance autobiográfico onde Primo Levi descreveu a sua sobrevivência aos horrores de Auschwitz e o retorno doloroso a uma Turim devastada pela guerra.
A política sempre esteve contida nas interrogações de Rosi. Nos seus filmes ele questiona as relações do Estado com a produção e com a violência, sem esquecer a relação da população com a cultura da violência. Mas é o roteiro escrito em parceria com Tonino Guerra (colaborador frequente de Antonioni, De Sica e Fellini) o responsável pela maior façanha: recriar o clima opressivo do texto por meio da contenção narrativa, algo tentado por muitos e obtido por quase ninguém nas adaptações para a tela. A escassez de diálogos ressalta a beleza neutra da fotografia e a qualidade do elenco, onde as experientes Irene Papas e Lucia Bosè se destacam como diamantes entre moedas preciosas. A combinação destes elementos faz deste filme um raro exemplar onde a literatura e o cinema se mesclam a um ponto de quase perfeição.
Outra virtude do roteiro: dar caráter universal a uma história que se passa em algum lugar nos rincões da Colômbia. Ao fazer isto, mostra que ali não ocorreu apenas mais uma história de sangue e vingança. Ali está representada a indiferença dos seres humanos, ali está contido o nosso comodismo, egoísmo e covardia.
Além de respeitar o que havia de simbólico no texto de García Márquez (sonhos, premonições, chuvas miúdas, pássaros, o cheiro do corpo putrefato se espalhando pela comunidade), Francesco Rosi presta uma homenagem a Alfred Hitchcock no filme. Há um crime, assassinos e vítima identificados, um sem-número de testemunhas e seres comuns perdidos no torvelinho do acaso, ao sabor de suas paixões, medos e contradições. Os movimentos de câmera são Hitchcock no melhor estilo ao perseguir os personagens e conquistar o público tanto para ser cúmplice quanto para ser o juiz do crime mostrado na tela.
Ornella Muti tem talvez o seu melhor desempenho no cinema, ao lado da prostituta Cass que fez em outra crônica, a “Crônica de um Amor Louco” (1981) de Marco Ferreri. A sua Angela, tanto na juventude quanto na velhice, é atrevida mas também covarde, é sincera e ao mesmo tempo mentirosa. São comoventes as cenas em que escreve cartas de amor duas vezes por semana, durante 27 anos, para Bayardo (Rupert Everett), seu antigo amor. Cartas que serão implacavelmente devolvidas sem terem sido abertas. O tempo, impiedoso, torna-se aos poucos um personagem do filme ao revelar e ampliar os ecos da tragédia, ao ressaltar as consequências não estimadas do preconceito e da indiferença.
Quando Santiago (Anthony Delon) tomba na morte anunciada desde o título, junto com ele caem cinco séculos de atraso, quatro deles de dominação colonial, caem a justiça servil aos poderosos, a formação religiosa questionável e os falsos moralismos. Gian Maria Volonté, na parte final do filme, brilha no papel de Cristo Bedoya, o personagem que reconstrói os acontecimentos de três décadas e finalmente encontra Angela para a surpreendente história poder ter o seu desfecho. Quando ele chega, a comunidade onde o crime ocorreu crescera muito, não era a mesma, tornara-se uma cidade, estava irreconhecível, desfigurada. As pessoas envelheceram e foram substituídas por outras, inúmeras, que enchiam as ruas com seus veículos, barulhos e sujeiras.
O filme de Rosi é importante, também, por ter reaberto o debate sobre o atraso cultural e o baixo nível de civilização que perduravam (e perduram até hoje) na América Latina, ao lado de questões delicadas sobre a capacidade de perdoar e a brevidade da vida. A violência, entretanto, em nenhuma circunstância redime problemas políticos ou conflitos de sangue, diz ele com sutileza nas entrelinhas das imagens. E o tempo é a melhor prova disso. Os personagens principais, apesar do sangue derramado, ou talvez por causa dele, estão condenados à mais violenta solidão, à mais absoluta infelicidade. A culpa pelo crime cometido no passado impede que desfrutem do presente e faz com que tenham medo do futuro.
No final, é com amargura que reconhecemos: a vida de todos, na cidade, não mudaria em nada com ou sem a anunciada morte de Santiago. Morte que muitos poderiam ter evitado, mas que encontrara justificativa na vaga acusação feita por Angela e na antipatia ou ódio que Santiago despertava na comunidade. Não era importante saber se ele era culpado ou inocente: importante era que a afronta fosse redimida, que alguém pagasse por ela, que a acusação não ficasse sem resposta “à altura” e todos pudessem voltar para casa e dormir com a consciência “tranquila”.
O painel de rostos expressivos que Rosi mostra em vários momentos do filme é um tribunal popular, na verdade, que tem o veredito tomado por consenso antes mesmo do início do julgamento. Santiago era culpado, ou melhor, deveria ser culpado. Sua morte não passava de uma consequência inevitável, um simples desfecho previsível para mais uma tragédia coletiva. Era o preço cobrado pelo atraso, pela ignorância, pela força, pela ausência de justiça, civilização e cultura.
Crônica de uma Morte Anunciada está disponível no YouTube.