Era agosto, mês de cachorro doido. A estrangeira Lucia McCartney lia Poemas Escolhidos, de Ferreira Gullar. Era uma mulher apaixonada pela literatura. Formava uma amálgama perfeita com os seus livros. Sentia-se mais feliz na varanda, lendo histórias curtas, histórias de amor, contos de terror e de morte, do que na cozinha, esquentando o ventre no fogão e esfriando-o no tanque.
Tinha dado a volta por cima depois de provar o sabor amargo da vida como ela é. Vestida de noiva, depois de ter desposado o doente Molière, que tinha sido brutalmente torturado pelas forças policiais do estado, presenciou a morte da própria mãe, atingida nas costas por uma bala perdida, calibre 22, durante uma perseguição no encalço de Bufo e Spallanzani, os prisioneiros políticos que tinham escapado de Pasárgada, os homens mais procurados pelos órgãos de inteligência do país.
A vida é um mar de histórias. Apavorada ao presenciar a cena execrável da mãe desabando da garupa da motocicleta que era pilotada por seu irmão, a menina de cá saltou do carro nupcial e correu até o corpo inerte da velhota. A poça de coágulos parecia uma rosa vegetal de sangue, só que mais grave e dantesca. Tomou em seu colo a genitora, desferindo no seu rosto quente, mas, inexpressivo, um último gesto de afeição: o beijo no asfalto. Tomada de desespero de causa, sussurrou no seu ouvido morto: “Nem que se passem mil e uma noites, eu e o irmão que tu me deste nos esqueceremos de ti, mãe”. Deus escrevia, por linhas tortas, um romance negro e outras histórias.
Portanto, por causa do drama pessoal e da mais completa falta de liberdade de expressão que vigia no país, Lucia McCartney alimentava uma ojeriza diferenciada pelos homens de farda. Estalou os dedinhos. Macunaíma veio correndo serelepe e saltou direto na rasura do seu colo fofo e quentinho. Afrouxou a coleira do cão. Fez nele cócegas e afagos. De repente, um barulho na porta. Mexiam na maçaneta. O bichinho levantou as orelhas e rosnou com ferocidade. Desta feita, um estrondo aconteceu. Com um pesado coice de coturno, a fechadura foi estourada e um destacamento de cinco homens invadiu a casa. Seu marido estava fora, fazendo exercícios de fisioterapia para recobrar os movimentos do coração partido, depois do inferno pessoal de passar dias sendo judiado por opressores oficiais.
— Feliz ano novo, disse o capitão, entoando a voz da forma mais cínica possível.
— Quem são vocês? O que é isso?
— Meu nome é Mandrake. Capitão Mandrake. Suponho que já tenha ouvido falar de mim.
— Mandrake, a bíblia e a bengala? — as pupilas de Lucia dilataram de pavor.
— O próprio. Deus, acima de tudo. A bengala, minha companheira fiel, um adjutório inseparável desde o atentado covarde de traidores da pátria contra a minha pessoa.
— O que vocês querem, capitão?
— Não se preocupe. Não estupramos mulheres feias. Vocês não merecem. Todos riram do chiste, à exceção de Lúcia e Macunaíma.
— Não entendo.
— Você já leu “O mistério da moto de cristal” para os seus alunos, professora?
— Sim. Claro. É um ótimo livro do Carlos Heitor Cony.
— É uma leitura inadequada para as crianças, sabia?
— Quem disse isso?
— O estado disse isso, senhora. O ato e o fato é que este governo não vai tolerar que as escolas sejam transformadas no harém das bananeiras.
— Não sei do que o senhor está falando.
— Conhece o seminarista?
— O seminarista? Que seminarista?
— O seminarista subversivo.
— Não estou a par, capitão. O tempo livre e o buraco na parede, como o senhor pode notar, eu preencho com os meus livros. Não sei do seu seminarista subversivo. Aliás, infelizmente, não professo nenhum tipo de religião ou fé. O meu ópio é a literatura.
— O castelo, as cidades e os sertões estão repletos de gente da sua laia, senhora, um bando de comunistas incrédulos que não temem o governo, quem dirá, o nosso Pai Celestial.
— Não sou comunista, senhor. Sou uma professora do ensino fundamental que, fundamentalmente, lê livros com os seus alunos, nada mais, nada menos.
— Você votou em Mojo Filter, senhora?
— O voto é secreto, capitão. Mas, para o senhor, eu digo: Não votei em Mojo Filter.
— Temos ordens expressas do secretário da educação para recolher e incinerar livros condenados que aliciam a nossa juventude. Fomos informados que a senhora possui uma vasta biblioteca no seu domicílio. Sim, é verdade, não dá pra negar. O que temos aqui, heim? Caio Fernando. Rubem Fonseca. Nelson Rodrigues. Machado de Assis. Contos de amor, de Rosa Amanda. Guia Millôr da História do Brasil. Diário de um fescenino. A senhora pode me dizer o que vem a ser “fescenino”, professora?
— Lascivo. Pornográfico.
— Pornografia é uma coisa obscena, professora.
— É a fome que é obscena, senhor.
— Na sua opinião.
— Não sou eu quem diz, capitão. Esta frase é do José Saramago.
— Saramago era outro comunista safado. O que mais se pode esperar de um homem que não acredita em Deus? Soldados, recolham os livros. A senhora, por favor, faça calar esse cão insolente e nos ajude a encaixotar as brochuras.
— Com todo respeito, capitão Mandrake, mas, isso é abuso de autoridade.
— A senhora ainda não viu nada, professora. Guardas, levem-na daqui.
— E quanto ao cachorrinho, senhor? Se ficar aqui sozinho vai morrer de sede e de fome.
— Você tem razão, soldado. Vamos poupar de sofrimento este pobre animal.
Então, Mandrake sacou a arma do coldre e disparou duas vezes contra Macunaíma.
*No corpo do texto foi feita a colagem de 43 títulos de livros que constavam na lista negra do governo estadual de Rondônia para serem retirados das escolas em fevereiro de 2020, por não se constituírem, na visão do estado, leitura saudável para crianças e adolescentes. Depois de severas críticas da imprensa e da mídia, a secretaria de educação voltou atrás na decisão e informou, por meio de nota oficial, que os livros não seriam mais recolhidos.