Sobre livros, mofo e cartões de crédito

Sobre livros, mofo e cartões de crédito

Sou um tipo que compra livros. Não o digo com orgulho ou modéstia; é apenas uma constatação, como se eu dissesse que pesco ou — tesconjuro! — jogo boliche. E sei que jamais lerei o que venho acumulando durante anos: ainda que os genes herdados indiquem uma possível longa vida, a fibrose pulmonar por causa da poeira acumulada nesses tantos livros é algo com que morbidamente conto — colecionai livros e um pulmão rígido como um militar da reserva não vos faltará. Enfim: juntar o que não será lido pode ser estranho, mas me consolo sabendo que há estropiados piores no mundo — Holbrook Jackson, no essencial “The Anatomy of Bibliomania”, criminosamente não traduzido aqui no Berço Esplêndido, pensava que colecionar livros seria uma mania “menos danosa do que a sanidade dos sãos”, e eu jamais poderia discordar do meu chapa Hol.

Outro dia mencionei a faina desse tipo de mania: espana-carrega-descarrega-espana. Um moto-contínuo de luta contra poeira, traças e mofo. Contra a poeira, nada a se fazer além das constantes limpezas: o cerrado em decomposição a traz sistematicamente por qualquer mínima abertura de janelas. As traças são vencidas com técnicas variadas, inclusive com aqueles despertadores antigos: o tique-taque ressoa nas estantes e assusta os famigerados bichinhos. Já o mofo é um caso mais sério — deve-se descobrir a causa da umidade, usar aqueles saquinhos com sílica para “secar” as estantes e escovar os livros, levando-os ao sol e deixá-los ali, quarando como roupa branca em beira de rio. O problema: Goiânia não tem visto muitos raios solares neste janeiro tenebroso, donde a solução tem sido ensacar os livros mofados com bicarbonato de sódio — dois ou três dias nessa dieta bastam para sarar os danados. Eu disse: é uma faina, um “combate que os fracos abate” (sim, além de os limpar, eventualmente eu também os leio…).

Mas me perdi, porque queria falar de outras coisas. A primeira: cartões de crédito. Compro livros e o dito sistema de inteligência da operadora do cartão desconfia dessa atividade e o bloqueia. Imagino o sistema inteligentemente pensando e inteligentemente decidindo: “Livros? Não pode, não pode”. O sistema é como o cara que dá esmola e diz “Não vai gastar com cachaça, hein?”. O sistema quer me corrigir, o sistema é o meu personal Bibliófilos Anônimos. O sistema…

Bem, telefono para a central, perco vinte ou trinta minutos e… o cartão é bloqueado na compra seguinte. Quando clonaram o meu cartão e compraram uma motocicleta no interior de São Paulo, o sistema não apitou. Passagem aérea para as Maldivas: a inteligência do sistema seguiu apática. Um jogo caseiro de boliche (tesconjuro!): nada. Pneus para jipe: o sistema atrasou-se como um estudante que perde a prova do ENEM. O sistema, claro está, só não gosta de livros; o sistema é como um secretário de cultura brasileiro, de qualquer cor ideológica: “Livros? Não pode, não pode”.  Se eu comprar lhamas, rinocerontes zarolhos, samburás, tubas, dioramas da Primeira Guerra, espadas de samurai, casas de bambu desmontáveis, flautas de encantar serpentes, tabuleiros Ouija e riquixás que já vêm com o seu próprio vietnamita, a inteligência do sistema não desperta; basta, porém, adquirir um miserável panfleto que o QI do tal sistema refulge glorioso e proibitivo. Tem solução? “Senhor, o sistema de inteligência é para a sua segurança.” Sim, eu sei, obrigado, mas ele bloqueia compras do mesmo produto e nas mesmas livrarias. “Senhor, o sistema inteligente é automático e para a sua segurança.” Sim, eu sei, obrigado, mas ele está atrapalhando a minha vida. “Senhor, permaneça na linha para dar nota a este atendimento.” Quase berro um “Que se fERROR404”, mas me humilho perante o sistema, tão inteligente, tão cheio de si e de certezas, muuuito diferente do degas aqui, este ser que anda meio de banda por causa das dúvidas, eu mesmo, “tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil” (sim, eu os leio…).

O outro tema: livreiros são sádicos. Os livros chegam, vejo aqueles pacotes esperados (“Quando o carteiro chegou/ e o meu nome gritou/ com uma carta na mão…”) e o prazer do momento logo é estragado na tentativa de destrinchar aquelas amarrações, mais fechadas do que corpo de carioca protegido por São Jorge. Jamais, jamais recebi um livro envolto num único pacote; no mínimo, são pacotes duplos, ambos invioláveis com metros de fita adesiva. E há quem pratique requintes de crueldade: primeiro pacote, segundo pacote, plástico-bolha, livro envolto em papelão ou jornal, fitas abundantes. Haverá um lugar no Inferno de Dante para esses estraga-prazeres, tenho certeza.

Um capetinha no meu ombro esquerdo me diz para tocar fogo nesses livros todos, matando ânsias, traças, mofos e, simbolicamente, livreiros sádicos e sistemas de inteligência (inteligência!) de operadoras de cartão de crédito; o anjo do ombro direito segura a minha mão, quase já buscando gasolina e fósforos, e me assopra no ouvido a lembrança de que, afinal, esses livros são a vida que construí, a vida de que gosto, a vida que não quero mudar, a vida possível — a vida.

Marcelo Franco

é promotor de Justiça. Instagram: @marcelofrancodeassis