Chega de tanto mi-mi-mi. O amor perdeu, parceiro

Chega de tanto mi-mi-mi. O amor perdeu, parceiro

Não me venham com essa história de “só o amor constrói”. Ontem mesmo, a balconista da vídeo-locadora em que sou cliente ajoelhou-se no asfalto escaldante — com aqueles joelhinhos bem torneados que até o papa aprovaria — e rezou com fervor ao seu algoz que só o amor construía, e blá-blá-blá, e ti-ti-ti, e assim mesmo levou um tiro na fuça que partiu o seu aparelho ortodôntico de linguinhas cor-de-rosa bem ao meio. Desde então, não consigo mais me imaginar locando os meus tradicionais três filmes tristes da semana sem pagar doze moedas praquela jovem criatura que ria à beça de qualquer coisa que eu falasse, até de política ou de uma sequela sifilítica. Sua alegria me comovia.

Portanto, mesmo sem ter pregado os olhos à noite, eu acordei mais irritado que padre em desfile de misse. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra: eu nasci para quebrar as correntes de fé e de oração, ou para demolir as pirâmides financeiras, tanto faz. Vocês, por obséquio, escolham o estrago. Vou guardar as lágrimas para as dores particulares. Tantas notícias ruins a escorrerem pela tevê já intoxicaram com coágulos de ferro a pança do meu cãozinho sem pedigree. Aliás, é bom que se lata: em matéria de desqualificação, asseguro a vocês que nós nos sentimos quase irmãos. “Vá roer os seus ossos no quintal, pequeno amigo. Ando meio sem fome. Tanta gastura assim já me deu mágoa na boca”.

Por cima do muro espetado com cacos de vidro — urge se precaver para que a água da chuva não se acumule nas garrafas, facilitando assim a proliferação do mosquito Aedes aegypti e dos marginais que infectam o bairro — duas velhotas equilibravam-se sobre duas cadeiras e, a despeito de estarem sempre se queixando de dores terríveis nas suas cadeiras, encontraram força interior para fofocarem um instantinho mais, enquanto o feijão cozinhava na panela. Comentaram a respeito daquele pirralho de apenas dezesseis anos que amassou a cabeça do próprio pai usando uma escultura da Virgem Maria de Maracangalha talhada em pedra sabão — pesada que só vendo, uma belezura — só pra ficar com a herança do sujeito.

“É o fim dos tempos. Esse povo não tem amor no coração”, uma disse à outra, como se não soubesse que há sempre mais espaço para as atrocidades, e que uma delas morreria ainda amanhã pela manhã, arrastada pela alça da própria bolsa na Rua da Amargura, ralando a carne até atingir os ossos, por um casal de meliantes motoqueiros que assaltavam velhotas descadeiradas nas portas dos bancos, arrancando-lhes a aposentadoria, os resquícios de dignidade, tudo sob o focinho malemolente da polícia e o paladar de cães vira-latas que se fartavam a carnificina da sarjeta.

Ora, vocês sabem, de um animal irracional que esteja com fome espera-se tudo, mesmo lamber sangue inocente. De um homem crescido, mal saído das fraldas, não há mais o que se esperar. Nem o mais criativo escritor de romances policiais será capaz de suplantar num livro a crueldade humana desses dias, que em nada difere daquela dos nossos antepassados: marmanjos que desposavam menininhas pré-púberes ainda no playground e os crentes que assavam pré-balzaquianas adúlteras nos roletes das fogueiras sob a anuência velhaca dos bispos.

Enquanto ninguém ali morria, pus toda a concentração que pude no diálogo das duas senhoras que espichavam os pescoços enrugados, trepadas no próprio mobiliário, a colocarem em risco a integridade dos seus esqueletos que eram a pura osteoporose. A mais delicadinha delas, a que eu mais gostava, aquela que sempre me oferecia seus biscoitos de queijo assados na hora, recordou que nunca antes na história de extermínios do país os celerados matavam tanta gente de bem.

Para embaçar ainda mais a minha manhã, que já nascera torta e um tanto morta, minhas vizinhas da melhor idade fizeram a pior resenha das últimas semanas, uma espécie de pingue-pongue de tragédias fresquinhas, um portfólio sórdido que, de tão extenso, por muito pouco não queimava o feijão na panela. Sem sacarem que uma delas perderia, não só a bolsa, mas a vida também, e que viraria manchete dos telejornais sensacionalistas de depois-de-amanhã, por causa do brutal ataque à porta de um banco, começaram a enumerar as mais incríveis barbáries dos últimos tempos.

“Você ficou sabendo, menina?! Aquele pastor que sangrou uma ovelha negra num motel-fazenda. Aquela aeromoça acrofóbica que se atirou dos braços do noivo em plena lua de mel. Aquele jardineiro infiel — o maníaco do parque — que podou as pétalas de incontáveis damas da noite. Aquele matador de aluguel que suicidou ao ser contemplado pelo Projeto Minha Casa, Minha Vida. Aquele estuprador otário que teve o pênis decepado pela guilhotina vaginal de uma professora de pompoarismo. Aquele serial killer que perdeu as contas de quantas aulas de matemática ele tinha matado. Aquele mágico de Orós que sumiu com o filho albino num desastrado ritual de magia negra. Aquele velho viúvo que aniquilou a saudade da sua falecida ao mergulhar numa piscina cheia de águas-vivas. Aquele príncipe pedófilo que comeu os sete anões pensando que fossem criancinhas. Aquele Deputado Federal da bancada do crime organizado que matou mais de trezentos moribundos que esperavam na bancada hospitalar do SUS. Aquele homem bomba que estourou nas paradas de sucesso com uma canção comercial das mais medíocres. Aquele médico cubano que curou um sonâmbulo, mas lhe matou todos os sonhos.”

 

Eberth Vêncio

Eberth Franco Vêncio, médico e escritor, 59 anos. Escreve para a Revista Bula há 15 anos. Tem vários livros publicados, sendo o mais recente Bipolar, uma antologia de contos e crônicas.