Então um dia o mundo, ocupado com o que realmente importa, num momento de divina iluminação, há de reunir sem maior espalhafato não uma comissão de notáveis das ciências e da política, nem um séquito de respeitosos acadêmicos e pensadores superdotados, mas uma turma desprendida, formada por pessoas de modos simples, representando diferentes origens, profissões, faixas etárias e níveis sociais variados. Entre essa gente, nada além de dois ou três interesses comuns, coisas como a inutilidade das conversas à toa, a profundidade dos assuntos desconhecidos e, claro, a alegria incomparável de dar e receber amor.
A esse grupo se daria o nome de Assembleia Geral das Mãos Unidas, ou, quem sabe, Encontro Internacional das Almas Simples, e seus integrantes se reuniriam sem a menor pretensão de deliberar e votar e construir graves e definitivas considerações a respeito das coisas universais, mas tão somente para comer e beber e falar de suas lembranças e de seus sonhos.
Conversariam sobre os perfumes inconfundíveis de seus avós, a importância de seus pais e de seus filhos e seus amigos. Abririam parênteses e aspas sobre seus pequenos feitos históricos, suas saudades e seus projetos. Fariam largas digressões sobre suas intenções sagradas, suas ternuras descobertas e seu dia depois do outro. Essas pessoas se encontrariam para nada senão para falar de seu gosto pela vida e celebrar o milagre, o mistério, a alegria e a graça divinas de estarem vivas.
De seu encontro à toa, realizado numa tarde qualquer de uma semana esquecida no calendário, sem grandes feriados ou comemorações relevantes, essa gente proclamaria, com a despretensão suprema dos desavisados de consciência limpa e coração saudável, a Declaração Universal dos Direitos e Deveres de Amar.
Seu artigo primeiro e único diria, com deliciosas delongas e rodeios inspirados, que a vida é boa demais para quem descobre o óbvio: o amor borbulha em todo lugar, de toda ordem, a qualquer tempo, e atinge em cheio todo e qualquer ser sensível. Mulheres, homens, cachorros, elefantes, passarinhos, baleias-cachalote. O amor está para além de qualquer convenção.
Entre mordidas em pães doces e longos goles de suas bebidas favoritas, nossos humildes representantes constatariam que há quem ame o que não se compreende e quem não compreenda o amor. É compreensível. Para uns, amar é deixar os sentimentos livres, abrir as gaiolas, soltar as coleiras. Para outros, é manter tudo em casa, por perto. Para fulano é não ter regras, para beltrano é manter as rédeas. E para sicrano? Para ele o amor ainda não chegou. Isso também acontece. Mas uma coisa é certa, diriam nossos declaradores: o amor não tem manual de instruções. No entanto, ainda assim, amar implica direitos e deveres.
Nossos embaixadores anotariam emocionados, em grandes folhas de cartolina ou em largas paredes brancas, que no amor, assim como em tudo na vida, os direitos e os deveres são almas gêmeas inseparáveis, amantes encantados que jamais se largam, um não existe sem o outro. E quando se separam já não há mais amor, mas qualquer sentimento distinto, tacanho e farsante.
Nos seus escritos, lá estaria em letras inconfundíveis: a quem ama, é dever olhar o outro assim como a si mesmo, com ternura e afeto e generosa confiança. É seu direito declarar amor a qualquer tempo, tanto quanto se lhe assegura o benefício de ficar em silêncio absoluto de quando em vez, de se trancar em si mesmo quando bem queira. Como um segurança de banco se isola no interior de sua guarita a prova de balas, protegido do tiroteio aqui fora. Como um líder de Estado se esconde em seu bunker esperando a guerra que nunca fará sentido.
Quem ama tem o direito de se dar e o dever de nada pedir em troca, mas de trabalhar empenhado na construção de um sentimento que se estenda ao outro naturalmente, sem cativeiros e correntes e obrigações impostas. Tudo isso estaria lá, impresso em nossa declaração de amor singular e universal.
Lá estaria escrito que é direito de cada um deixar o amor entrar quando queira. E é seu dever assisti-lo acontecer em um tempo próprio, rápido feito um disparo ou lento tal qual um velho vendedor ambulante, o passo manso, parando aqui e ali em conversas à toa, como quem interrompe uma frase no meio.
Nosso documento universal traria lavrado e atestado que os amantes têm o direito de anunciar seu amor ao mundo e fazer inveja aos outros. Mas têm o dever de respirar fundo a tristeza e ouvir com calma, no quarto de um motel sem alma, na sala fria de uma terapeuta de casais ou na área de serviço de um pequeno apartamento: “eu não gosto mais de você”.
É dever de quem ama aceitar o fim. E que no fim lhe seja guardado o direito ao recolhimento. Que quando preciso cada um se permita esperar no seu canto em merecida mudez, escrevendo cartas a Deus e todo mundo, na mais humana tentativa de combater a tristeza caprichosa que ora irrompe robusta, em enxurradas de choro e avalanches de angústia e desamparo, ora goteja seu chuvisco úmido e melancólico de mágoa.
Quem tem o direito de amar tem o dever da compreensão pura e simples: o amor também pode acabar. Aí só há de restar o adeus e um até breve confiante em seu próximo encontro dia desses, na esquina dos pensamentos soltos, com o respeito devido a quem lhe foi tudo na vida e um dia há de ser somente uma lembrança tranquila e doce.
Nossos embaixadores humanos falariam e ouviriam e celebrariam até tarde, com risos e lágrimas, o trabalhoso ofício de viver e de amar, encerrando seu documento com a frase: “aceitas e respeitadas todas as impressões em contrário”.
E que assim, estabelecidos os modos e ajeitados os pingos em cada i, sejamos enfim tomados por uma coragem simples e imperiosa de assumir o que somos: naturais detentores do divino direito e do sagrado dever de dar e de receber amor.