Fotos: Jair Bolsonaro (Alan Santos/PR) Lula (Fernando Frazão/Agência Brasil)
A maior evidência dos apuros em que se encontra o país está na adoção cega e irrestrita de um dos polos da política atual. O bom senso dá lugar à aversão pelo contrário e o embate de argumentos cede espaço à troca gratuita de farpas. A alienação é, talvez, um dos grandes legados negativos de toda essa polarização tensa no Brasil, o que leva à reflexão sobre algo que deveria ser bastante evidente: é possível não gostar de Lula nem de Bolsonaro ao mesmo tempo.
Falar em Lula ou em Jair Bolsonaro é mexer com paixões. Na maioria dos casos, o que se vê é a racionalidade sendo deixada de lado em favor da admiração e confiança inabaláveis que a histeria coletiva costuma adotar em cada caso. A biografia dos dois, aos respectivos fãs, parece ungida e imaculada; não há questionamento de seus atos ou discursos falhos, já que traições ideológicas seriam o comburente necessário para o outro medrar. Esse confronto de torcidas vem arranhando qualquer tentativa de convivência pacífica no país, e a radicalização assume um protagonismo tão escancarado quanto arrebatador.
Não há dúvida de que o princípio essencial dessa luta sem vencedores seja a retroalimentação mútua. Bolsonaristas e lulistas, necessariamente, precisam de seus opostos para sobreviver. Não há, pois, interesse no desaparecimento das forças contrárias, já que é justamente na justaposição dos extremos que surge o endeusamento de cada um. Ao terem suas atitudes comparadas, o filtro da repulsa — por meio do proposital exagero dos defeitos alheios — serve de cabo eleitoral infalível. Mexer com o medo das pessoas virou um grande comércio político, no qual os dois lados saem ganhando.
Lula, com certeza, vibra com a fala destemperada de Jair Bolsonaro. É desse palanque que ele precisa para colocar o conceito de democracia debaixo do braço e se autoproclamar defensor dos direitos humanos e caridoso protetor dos vulneráveis. Ao mesmo tempo, Bolsonaro tem um grande trunfo ao expor um Lula livre, mas radical. Para o capitão reformado, o eterno fantasma da volta do desafeto, ainda que inelegível, é um meio imprescindível para recompor sua capilaridade política e colocar-se como bastião da luta contra a corrupção. Um acaba sendo o malvado favorito do outro. De algum jeito, ambos saem mais fortes.
No entanto, é óbvio que não há um equilíbrio verdadeiro nesse xadrez político, já que apenas os próprios ícones saem ilesos. Enquanto os eleitores fascinados se digladiam na defesa de seus heróis, a qualidade do debate escoa pelo ralo, não havendo de nenhuma parte qualquer interesse pelo fim desse dilúvio destrutivo. Amizades são desfeitas, famílias entram em parafuso ideológico e não há a menor parcimônia em nenhum dos lados, fazendo com que a poliarquia se torne um sonho dos mais distantes. Como no messianismo do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, a exploração da miséria é mais importante que sua solução de fato. E o jogo de marionetes é o pilar focal dos olhos de ambos.
Veja bem: Lula e Bolsonaro têm mesmo algumas vidraças simbióticas em comum. Enquanto presidente da República, Lula, sob a égide da diplomacia e dos interesses econômicos, apoiava e se reunia com os mais diversos ditadores, tais como Muammar Kadafi, Mahmoud Ahmadinejad e Teodoro Obiang. Bolsonaro, que já homenageou ditadores mortos como Stroessner e Pinochet, faz o mesmo com Viktor Orbán, o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman e o presidente chinês Xi Jinping. Além disso, sempre que pode, ameniza os absurdos ocorridos no regime militar brasileiro e, desde quando não passava de um integrante do “baixo clero” do Congresso, costumava soltar rojões no dia 31 de março — aniversário do início da ditadura no país. Para cada pedalinho com nome de neto em um sítio, há um chocolate com laranja ou uma “rachadinha” correspondente.
É óbvio que, na adoção de um ou de outro como patrono dos bons valores, não há vencedores entre os do povo, apenas lucro para os próprios “messias” populistas. A polarização é interessante para ambos e, no pior dos cenários, acaba servindo de condição de existência de suas próprias qualidades. Nessa trágica comédia da vida política nacional, ter senso crítico talvez signifique desprezar ambos em favor da própria saúde mental e da saudável convivência.
No fim das contas, não gostar de Bolsonaro nem de Lula não é uma contradição em si. É, antes de tudo, um grito de liberdade. Entre mortos e feridos, salvam-se os iconoclastas.