Você sabe que tem gente se matando agora, não sabe? Tem um povo bombardeando outro, crianças apavoradas, mulheres subjugadas. Uns homens soltam bombas, outros prendem o choro. Edifícios desabam fáceis, sob a mira dos mísseis prateados, impecáveis. Famílias se desmancham como papelão na enxurrada, canalhas fogem com o dinheiro do povo. Ódio vira regra, medo se faz prática, desespero se torna música. O sucesso de audiência é a nossa escandalosa miséria de todos os dias.
E você, decerto, já se deu conta do quanto sobrevivemos desviando, esquivando, escapando, correndo uns contra os outros. Não que eu acredite que isso tudo vá mudar por obra da nossa mais pura e simples vontade esperneada. Mas eu tenho a impressão de que a gente devia passar mais tempo juntos, sabe?
Porque assim, juntos, talvez a gente perceba, cheios de vergonha, o quanto se deixou convencer de que essa porcaria toda é “normal”. Normal, assim, como um cachorro ordinário que morde o outro porque tem todos aqueles dentes pontudos e eles não podem ficar ali na bocarra sem uso e você sabe, cachorro morde mesmo, morde por puro instinto.
Juntos, quem sabe a gente compreenda que “normal” é coisa nenhuma! E que é preciso resgatar do fundo da gaveta aquela velha capacidade de indignação desbotada que fazia tanto sucesso no verão passado.
Quem sabe assim teremos, para cada declaração de guerra, um milhão de declarações de amor rasgadas, confessadas sem pudor a quem quiser ouvir. E na esteira de cada afirmação amorosa seguirão novos gestos e atitudes renovadas e medidas de amor desmedidas.
Para cada um dos longos anos que nos separaram até agora, brotarão das rachaduras no asfalto florestas de instantes a nos unir em abraços emocionados de encontro e festa.
É, sim. A gente devia passar mais tempo juntos. Devia parar e sentar e conversar e lembrar nossas coisas. E lá, no terreno baldio das lembranças saborosas, estaremos nós, engatinhando por uma selva de pernas enormes em uma festa chata de adultos enfadonhos, ouvindo ao longe suas conversas altas e miradas importantes, até uma hora chegarmos ao abrigo sob a mesa grande, de onde roubaremos uns brigadeiros e cajuzinhos para nossa ceia secreta e submersa, protegidos do mundo e de suas questões inatingíveis em nosso universo simples e subterrâneo.
De nosso encontro, soltaremos os risos que um dia seguramos para a foto até doer o rosto. E a cada risada alta, o amor há de acordar de seu sono, o amor e sua energia atômica, sua força motriz poderosa, sua vontade que a tudo movimenta e estremece acenderá nas sombras e explodirá feito as bombas dos facínoras.
Seu estrondo despertará nossas coisas de amor que nos arrancam do sofá e nos põem de pé, em movimento, a seguir nosso caminho de um tempo novo, a seguir cenas dos próximos capítulos, rodadas na descida de nossa serra do mar, nosso corredor da vida onde se vai adiante mais do que se espera cair do céu.
Porque do céu nada cai exceto nós mesmos, despertos de nossos sonhos de grandeza em cada pequeno acaso de nosso dia depois do outro.
Juntos, aprenderemos de novo a pedir com jeito, a trabalhar com força e desejo e honestidade, repetindo delicadezas em todos os idiomas, batucando textos de amor como pretextos para amar.
E em nossa imaginação amorosa, inventaremos pessoas, cenas, famílias, festas, churrascos de domingo, casamentos repletos de gente amiga, disposta a reescrever a história toda. Ou ao menos a nos fazer sentir menos sós.
Assim, juntos, irmanados pela aventura do amor à vida, a nós mesmos e ao outro, criaremos uma nova ordem, um novo estado de coisas, e escreveremos a milhares, milhões, bilhões de mãos a nossa declaração universal dos direitos e deveres de amar.
Não que eu acredite que toda a miséria do mundo assolado pela raiva e a burrice vá frear sua marcha louca de uma hora para outra, e os exércitos se ajoelhem sob a beleza de um arco-íris monumental debruçado sobre todos os continentes. Mas ao menos estaremos juntos.
Amantes, amores, amados, avante. Ao trabalho!