Nunca roubei nem matei um homem. Mas, já tive vontade

Nunca roubei nem matei um homem. Mas, já tive vontade

Detesto malas. Em especial, detesto malas com rodinhas. O barulho delas no assoalho da casa dá-me nos nervos. Quase sempre, dizem-me da saudade, dos adeuses, dos olhos marejados, das áreas mentais sujeitas a turbulência, da náusea que me deixa aéreo. Sofro certas neuroses que não resistem a uma porção de pão-de-queijo com café na praça de alimentação de um aeroporto. Cobram os olhos da cara pelos tradicionais biscoitos de Minas nessas biroscas aeroportuárias. Os comerciantes dizem que a culpa é da Infraero, que faz os seus fígados sangrarem todo dia 30. Pagar aluguel é broca. É a presença pesada, intangível, de um sujeito ou de uma entidade com um baita patrimônio material, que fatura horrores, colocando o vil metal para trabalhar por ele. Tempo não é dinheiro. Tempo é a vida escapando entre os dedos, por mais que se ganhe dinheiro.

Deixar Julia no aeroporto sempre foi e sempre será uma tarefa incômoda. Odiamos as despedidas. Nisso somos parecidos. É desagradável quando ela desaparece do meu campo visual, na curva da fila do embarque. Hora de cair fora e morrer em escandalosos trinta pilas cobrados pelos gangsteres que gerenciam um estacionamento onde vozes cínicas, metálicas, engolem tíquetes com códigos de barra e nos desejam um “Volte sempre”. A gente acaba sempre voltando para estacionar naquela joça, por pura falta de opção.

A cada dia que passa, gosto mais dos extremos da vida: crianças e velhos. Penso que seja pela franqueza. A humanidade anda tão intragável quanto um suco de laranja em Guarulhos. Não vou pagar trinta paus numa garrafinha de suco de laranja. Nem fodendo. Tenho o péssimo hábito de xingar, sim, eu sei e não peço desculpas. Talvez, justamente por isso, ainda não tenha enfartado. Ah, se eu fumasse… Se eu fumasse, o cigarro me tragava até a guimba. Tenho muito brasa ardendo na cabeça, podem crer.

Neste instante, serei forçado a abrir o dicionário. Não estou certo de como se escreve a palavra “reveion”. Agora, sim. A noite do réveillon saiu-me melhor do que a encomenda: estive longe das multidões empolgadas. Sacrificamos uma jovem leitoa, sem requintes de crueldade; socamos uma maçã argentina na sua boca; enfiamos no forno e chupamos as costelas, a estalar os beiços, a tomar vinho, a ouvir as canções que a gente mesmo escolhia. Nada de DJs sarados mandando na nossa trilha sonora. Festa de revenhon, ou melhor, festa de réveillon é quase sempre um pé no saco. Confraternizar nunca foi o meu forte, ainda mais, com estranhos. Típica conduta antissocial? Talvez. Na dúvida, não me convide para o seu funeral.

Inauguramos uma caixa de som supimpa que o Papai Noel comprou na Macy’s, parcelada em seis vezes no cartão. Ela mede o tamanho do sapato de uma mulher, não possui fio, cabo ou pilhas, e ainda por cima reproduz um som límpido e potente. Parece coisa do demônio, mas, é fabricada pela JBL mesmo. Tamanho não é documento. Faz anos que digo isso para a minha esposa. Ela enche as taças e ri desbragadamente. Amo aquela safada.

Fico menos rabugento quando etilizado. É como se a felicidade, finalmente, saísse do armário. A parte ruim foi que não havia crianças na festa. Quem dominava a resenha era o Naldinho, um velhote de noventa e quatro anos, que tinha deserdado durante a guerra, antes da tomada de Monte Castelo: “Não vou atirar em ninguém nessa merda”. Estava casado pela quinta vez. Perguntei a ele qual era o segredo para liquidar as esposas sem ir pra cadeia. Ninguém riu da piada. A primeira tinha morrido de parto; a segunda, de câncer; a terceira pulou da Ponte Rio-Niterói e a quarta sucumbiu de causas naturais ao atravessar uma avenida movimentada fora da faixa de pedestres. Pipocaram os fogos de artifício. Neste ponto, sou meio canino: odeio os foguetórios. As taças foram erguidas em brindes para-lá-de-Bagdá. O ano prometia ser a mesma droga de sempre, mesmo assim, todos estavam otimistas. Bêbados e otimistas.

Como eu já disse, gosto muito de conversar com gente idosa, desde que o assunto não sejam os intestinos soltos e as planilhas em Excel para se tomar pílulas. O que não tem remédio, remediado está. Fica-se velho e ponto. Quem nunca morreu acaba morrendo. Vão reclamar com o Papa e acabarão estapeados. Tomado de álcool até os ossos, Naldinho estava mais carismático do que o normal, contando mentiras e inventando verdades a respeito da sua mocidade, quando comia carne de caça crua e perdia a vida como maquinista na região da estrada de ferro.

Contou a história de um sujeito que tinha lhe causado enorme prejuízo financeiro, de forma premeditada, levando-o à bancarrota, durante a ditadura militar no país. Empolgado, escumando pelos cantos da boca, Naldinho teorizou que dinheiro não fazia grande diferença na vida de um ser humano, naquela altura em que se está prestes a realizar a famigerada grande travessia. “Não quero atravessar porcaria nenhuma. Sirvam-me mais merlot”.

Quem morre de véspera é peru. Naldinho confidenciou que nunca tinha roubado nem matado um homem, mas, já tinha sentido vontade. Mijamos de rir. Sabíamos que era galhofa. Lola saiu debaixo do sofá, deu as caras, reapareceu após o show de pirotecnia e foi se aninhar nos pés do Naldinho. Os cães sabem das coisas, inclusive, que não podem confiar piamente nos seres humanos. Porque não somos canídeos, a gente ri das próprias mazelas, embriaga-se com vinho e sente aquela baita esperança de que dias os melhores virão.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.