O amor é um bailarino que convida para a dança

O amor é um bailarino que convida para a dança

Alguém passou aqui dançando. Você viu? Entrou por aquela porta ali, varreu os cômodos rodopiando a leveza dos anjos, girou sobre os pés deslizando pela casa, como se minha casa fosse um enorme salão no meio do mundo todo e a humanidade, seu corpo de baile.

Em sua dança, chegou pisando leve, cantando baixinho como quem reza a Nossa Senhora dos Pequenos Milagres para que o afeto seja nosso eterno ato de contrição. E que entre uma pedra e outra do caminho floresçam mudas de bom dia, boa tarde, boa noite, por favor e obrigado.

Lá pelas tantas da vida, quando o vazio se torna insuportável e até o mais resoluto e resistente ser solitário corre para preenchê-lo de qualquer sorte, alguém passou aqui dançando. E nos sons dispersos da música que anunciava sua chegada, trouxe ares de vida nova. Como a carícia furiosa que condiciona toda criação.

Alguém passou aqui dançando. Dançou como quem enfeita o dia e enfeitiça a noite, dá jeito no mundo e pede a Deus para baixar um decreto irrevogável, determinando a fraternização impossível e esperada entre todos os bichos, a começar pelo animal humano.

Dançou seus dois pra lá, dois pra cá como quem repete um verso simples, daqueles que atravessam o pensamento, anunciando o quanto somos nada, meros e pequenos tripulantes de um tempo que ora despenca rumoroso por corredeiras xucras, ora desliza manso sobre tardes gentis de festa e amigos.

Você deve ter visto. Ah, você viu que alguém passou aqui dançando como quem espera nos encontrar com flores nas mãos e vergonha na cara, sobrevivendo a tudo, resistindo a tanto não e tanto sim, desviando de chutes e socos, tapas e joelhadas nas costas.

Alguém passou aqui dançando, e em seu sapateado vigoroso estremeceu e rachou o solo duro de ódio das razões indiscutíveis, dos ex-amigos intoxicados por suas certezas, ruminando maldades a Deus e ao mundo.

Assim dançando, dançando, mandou longe quem nos amava ontem, nos odeia hoje e há de nos esquecer amanhã. Salvou-nos intocados da chuva de lâminas da burrice, da inveja, da intolerância, da cegueira, da empáfia, das mentiras insistentes e das verdades absolutas.

E em seus passos aéreos de graça, nos deu saudade dos pequenos comércios de rua, das lojas conjugadas às casas de seus proprietários empedernidos. Dos vendedores de suspiro e salgadinho a granel, do sol confortando os vira-latas deitados na calçada.

Dançando, alguém nos conduziu de volta às lojas de roupas usadas, as prateleiras entupidas de sandálias de solas gastas, marcadas pelo peso de seus antigos donos, esperando novos compradores. Em sua dança, resgatou os salões de bairro vazios e seus barbeiros dormindo sentados em cadeiras giratórias, às três horas da tarde de uma segunda-feira que dura todos os dias do ano.

Alguém passou aqui dançando. E dançando jogou em minha cara o quanto nascemos para nada, senão para aprender o passo a passo sem fim do amor, deslizando através das camadas de sonhos desidratados, à espera da água das possibilidades que o farão crescer e acontecer.

Você bem viu. Não foi o vento que bateu aquela porta, bagunçou o varal, espavoriu o cachorro. Foi o amor que passou aqui dançando.

André J. Gomes

É professor e publicitário.