Dias tristes. Dias felizes. A vida é feita de perdas e ganhos. Até aqui, nenhuma novidade. Hoje foi um daqueles dias escabrosos que deixam a gente acabrunhado, mais para baixo do que diferencial de sapo. Da sacada de um prédio, acompanhei o reboliço de gente do outro lado da rua. Cerca de trinta pessoas faziam um manifesto pacífico que me tirou a paz de espírito. Calado, estático, com cara de paisagem, eu observava a movimentação da turba indócil.
Os manifestantes vestiam camisetas pretas com as fotos de ícones caninos do cinema, como a Lassie, o Rin-Tin-Tin e o Beethoven; usavam chuquinhas nos cabelos, feito pinschers, e se agrupavam no passeio público, em frente a uma clínica médica onde dava expediente um jovem doutor que fora preso numa birosca em que funcionava uma promissora rinha de cães. Pelo que foi noticiado, o encontro de apostadores parecia o acontecimento do ano, tendo em vista que dezenas de indivíduos estavam presentes e foram todos trancafiados pelos polícias. Depois de pagar fiança, o médico foi liberado para dormir em casa, se conseguisse pregar os olhos, obviamente, depois de tamanho sufoco e exposição. O outros detidos eu não sei dizer. Motivada pelos índices de audiência, a imprensa focou no esculápio.
Dinheiro nas mãos. Cachorros rasgados. Games de carnificina. Churrasco de pitbull. Médico envolvido na trama. Notícias macabras como essas queimam igual gasolina nas redes sociais da internet. Quem não gosta de um cachorrinho? Quem não se amarra numa boa desgraça? Portanto, a comoção pública foi enorme. A multidão, inconformada com os maus tratos à matilha, empunhava cartazes com palavras de ordem — repletos de erros gramaticais irritantes, diga-se de passagem — em prol dos bichinhos e contra o acusado. A opinião pública pegava pesado contra o doutor e o pobre diabo apanhava mais do que as mulheres no Brasil.
Entendo a revolta do povão. Briga de cachorro grande não é coisa boa de se ver. Rasgam-se até a morte. Pelo que eu depreendi do piquete, o ato exigia a condenação do doutor — um demônio trajado de jaleco, conforme os letreiros — e a sua castração profissional, ou melhor, a sua cassação profissional, muito embora, enquanto partícipe do suposto delito, ele não estivesse no exercício legal, nem ilegal, da profissão médica. Por mais que se queira, por mais que se ame, cachorro não é gente, espero que concordem com a assertiva, senão, vou pensar que todos enlouqueceram de vez.
Não demorou muito, os manifestantes cansaram de se manifestar e foram ao shopping fazer as compras natalinas, largando bastante lixo para trás. Coisas de brasileiro, sabem como é. Definitivamente, o mundo parece de pernas para o ar. Nunca estivemos tão doidos. Farejo um bocado de hipocrisia no ar, só pra variar. Senão, vejamos: não enxergo distância confortável entre as rinhas de cães e os embates sanguinolentos dos fortões do MMA. Não acho razoável que homens e mulheres digladiem com tanta brutalidade, emporcalhando o octógono com sangue e outros fluidos. Pra falar a verdade, estou cagando e andando para quem chama isso de esporte. Diferentemente dos pitbulls, os “atletas” não brigam até a morte, embora, isso até já deva ter acontecido sem que ninguém ficasse sabendo. Não se divulgam as estatísticas de danos físicos temporários ou permanentes dos lutadores. Nunca vi piquetes contra o vale-tudo.
Vivemos tempos estranhos nos quais prevalecem a instantaneidade da comunicação e a plena liberdade de expressão, sob a égide de um alvará virtual que libera os indivíduos para o mau gosto, o apego à frivolidade, a sordidez e a insensibilidade. Não tive interesse de assistir aos vários vídeos que me foram enviados por “amigos”, mostrando o baculejo policial contra os contraventores. Embora eu abomine multidões e efeitos manada, faço coro com aqueles que consideram um absurdo os maus tratos aos animais, inclusive, mamíferos como nós. Todo o contexto deste crime é lamentável, sobretudo, a reação desproporcional de muitos.
Além de se mostrarem imediatistas, cruéis e inquisidores, faltaram-lhes prudência, caldo de galinha e misericórdia. Juro que não me sentaria com esse tipo de gente nem que fosse para traçar um panettone, quem dirá, um espetinho-de-totó. Como se o fato em si já não fosse abominável o bastante, pessoas se ocuparam em tripudiar contra quem já estava moralmente combalido, nocauteado, caído na lona. Sinto pena deste rapaz que sequer conheço. Talvez, tomasse um chope com ele, para conhecer os seus motivos. Não imagino por que cargas d’água foi parar numa latada como aquela. As pessoas erram. Sempre. Muito. Todo santo dia. Muitas vezes, adoecem, mentalmente, sem que saibamos. Não sou eu quem vai julgar. Por questões óbvias, ficará a cargo da justiça.
Fato é que não se chuta cachorro morto. Isso é covardia. E é exatamente o que um monte de gente fina, elegante e sincera anda fazendo nas famigeradas redes sociais, sem dó, nem piedade, a despeito de um suposto espírito natalino que, pelo visto, não atingiu os seus corações hipócritas.