Prestemos atenção, pois o céu acaba de beijar a terra

Prestemos atenção, pois o céu acaba de beijar a terra

Crônica dedicada aos Editores da Bula, Carlos Willian Leite e Tainá Corrêa, que acabam de nos presentear com a chegada do seu filho, o Céu

O céu beija a terra e afaga as arestas do planeta muito mais vezes do que se imagina, no decorrer desta nossa curta existência. Quando o sol, ainda se espreguiçando cumprimenta gentil as novas alvoradas.

Durante uma pesca silenciosa, quase um mantra para um pescador eterno banhado de luz em seu trajeto marinho. No exato instante em que uma flor, ainda em botão, larga seu título de menina — moça e desabrocha para as abelhas se banquetearem de alentos.

O céu acaba de beijar a terra, quando se curva solene sobre um terreno arado e investe na eclosão da semeadura. Na ocasião em que convoca toda a fauna, os pássaros do agreste, os bichos-de árvore para se aquecerem debaixo de seu generoso manto amarelo.

Na hora em que ele, usando enormes binóculos azuis, corteja as moças, cada qual com um corpo mais belo e uma pele em tons deliciosamente escalonados, expondo o bronzeado crescente que o astro-rei favorece.

O céu acaba de beijar a terra quando pede ao sol, lá do alto de sua morada, para tocar em alto e bom som o sino da vida plena para todos os desatentos e apressados seres do universo.

As joaninhas param para ouvir. As garças desenvolvem voos ainda mais brancos e açucarados. As copas das árvores se preenchem de orgulho e festa sumarenta. Quer uma fruta? Escolha.

É frequente pensarmos que certas distâncias na geografia do mundo são intransponíveis. Mas não. É tudo um jogo de esconde-esconde cósmico, pois o poder da vontade perpassa fronteiras e sacia impensáveis e cansadas saudades longínquas.

Normalmente, afogados nestes tempos virtuais, duvidamos do florescimento advindo das separações físicas entre povos, continentes, oceanos e desejos.

Mas por acaso o coração submete-se a empecilhos? Os sonhos se curvam diante de neblinas? As mãos se recolhem quando o outro se foi e desistem de seus largos desígnios?

O céu acaba de beijar a terra quando uma lágrima brota no canto esquerdo de um olhar órfão. Uma cachoeira virgem acorda nas montanhas. Um pinguim acaba de gerar mais um herdeiro nas zonas frias do hemisfério norte.

Ele também beija a terra quando decide invadir geleiras árticas, cumprimentando em pessoa focas e ursos polares — que largam seus cachecóis para brindar todos os festejos propiciados pelos ventos azuis.

O céu beija a terra sempre que minúsculos milagres explodem no cotidiano cinzento das cidades sem alma. A plantinha que teima em avançar sobre as ranhuras de cimento e pedra e grita seu verde inchado de coragem: “Eu existo, eu resisto!”

Novos beijos se sucedem, quando um beija flor para lá de multicor pousa em nossas janelas atrás de balés e de mimos. Um elefante na África elege uma cachorra como companheira inseparável.

Um lince no zoológico acolhe as travessuras de um gatinho, adotando-o como sua cria inseparável. Um gafanhoto pula em nossa cabeça deixando nosso raciocínio mais ágil e os ideais banhados de verde-esperança. Uma aranha tece uma teia linda, como se fora uma das mandalas de Jung, o visionário psicanalista.

O céu acaba de beijar a terra sempre que repete a plenos pulmões que a liberdade é azul e para sempre o será, desde que possamos abraçá-la, embrenhados nesta maravilhosa aventura de viver. Caminharmos a esmo pelas ruelas do destino, descartando continuamente experiências gastas por momentos inauditos.

Nas ocasiões em que a luz vence uma doença gravemente ameaçadora, o céu estende aí suas secretas bênçãos. Nos becos em que inimigos se reencontram inadvertidamente, denunciando, porém, um inesperado brilho no olhar. Quando os idiomas se tornam inteligíveis para todas as esferas do planeta, sendo apenas traduzidos por simples sorrisos.

O céu acaba de beijar a terra cada vez que uma criança nasce e ousa inundar este mundo, viciado em cacoetes do mal viver, de purezas cuja maciez e alvura excedem às das nuvens.

Milagres existem e se multiplicam quando permitimos que alguém entre em nosso quarto de brinquedos, guardados até então por chaves enferrujadas de descrença e destranque, enfim, um a um, cada baú de tristezas amarfanhadas.

Todas as vezes ainda em que o amor insiste em permanecer entre os homens, desabonando rancores, violências, injustiças, o céu acaba de beijar a terra.

Porém não é só a terra ele beija. O céu se inclina especialmente para cada um de nós.

E com uma piscadela cúmplice, nos implanta asas de seda,  transformando-nos de imediato em pássaros altaneiros, que cuidam atentos das pequenas e grandes histórias nossas de cada dia.

Graça Taguti

Professora e escritora.