Eu disse tchau, boneca. Ela disse eu não sou boneca e me acertou em cheio com um sorriso que por muito pouco me derrubava da cadeira giratória. Homens que complicam tudo quase sempre são surpreendidos por gestos simples, vertiginosos, de girar a cabeça. Eu expliquei que ela era tão bonitinha que até se parecia com uma boneca, era isso o que eu queria dizer.
Ela sorriu de novo e segurou a mão da mãe. Partiram. O meu dia, num breve instante, fora remendado pela ternura de uma criança. Devia contar uns quatro anos a criatura. Era uma mulatinha adorável, carismática, com tranças enfeitadas por fitas, miçangas e sementes inférteis. Vestia-se com um vestidinho velho, sujo, rendado, com joaninhas tetraplégicas desenhadas no tecido de chita. Supus que herdara a roupa de alguma criança abonada. O tecido não era para pobres. Na outra mão, aí sim, segurava uma boneca de verdade, feita de plástico, sujeira e muita feiura. Faltavam-lhe os olhos feitos de contas.
O objetivo do encontro era convencer a mãe a colocar em dia o cartão vacinal da menina. A mulher era turrona, deselegante, analfabeta, alcoólatra e vestia uma camiseta da campanha eleitoral de Mojo Filter ao governo presidencial, na qual ele aparecia apontando uma arma contra a cabeça de ninguém mais ninguém menos do que o próprio Jesus Cristo. Ela justificou a impropriedade, a falta de iniciativa maternal, porque tinha ouvido falar que pessoas estavam derretendo, morrendo ou ficando aleijadas para o resto da vida por conta de vacinas tomadas na testa, na língua ou na bunda.
Naqueles dias, havia, sim, lastimavelmente, um claro movimento contra as imunizações em massa, o que fazia crescer, em escala exponencial, a incidência de pragas e loucuras no seio da comunidade. Provavelmente, aquela velada revolta contra as vacinas era resultante de uma enxurrada de notícias falsas disseminadas por patriotas sacripantas que duvidavam que o homem tivesse cagado na lua e que o Planeta Terra fosse redondo feito o cu de um peru. Para piorar a situação, recrudescia uma famigerada onda de intolerância racial e social, catalisada pela fundação de um partido político fundamentalista que pregava, dentre outras sandices, a vinda de Deus ao mundo, desde que armado até os dentes, conforme profecia do escritor mineiro Guimarães Rosa.
Enquanto saíam pelo corredor catarrento do postinho de saúde, observei que a menina tinha vergões roxos nas panturrilhas, popularmente conhecidas como batatas-das-pernas. Comentei o fato com a enfermeira sexy, uma dessas criaturas caritativas que serão recebidas no paraíso por uma banda de anjos catatônicos tocando pífanos, e ela me garantiu que as marcas eram decorrentes de surra recente com correia de motor de fusca. Tive uma sensação ruim, um estremecimento interior, um misto de revolta, indignação e impotência.
No dia agendado para o retorno de mãe e sua filha, simplesmente, não deram o ar da graça. Uma equipe de agentes comunitários porcamente remunerados pelo município foi escalada para uma incursão num bolsão de miséria, uma busca ativa pela dupla para que se efetivasse a bendita imunização da garotinha contra microrganismos velhacos reconhecidos mundialmente pela péssima índole. Com muito custo, a força tarefa encontrou o endereço, um casebre precário fabricado com ripas de caixão demolido, que ficava dependurado às margens de um esgoto a céu aberto, que antes funcionava como um riacho chamado de Diacho de Mundo. Estacionaram o furgão enferrujado numa vaga exclusiva para miseráveis filhos da puta e se depararam com a negra sentada numa lata de banha de lipoaspiração, claramente chapada. Perguntaram pela garotinha, que era o interesse maior daquela missão. A mãe arqueou, balançou o corpo como se fosse uma estaca no brejo e balbuciou que, ontem à noite, a menina tinha saído, a mando dela, para comprar uma garrafa de Cuspe Sour na vendinha do cortiço e nunca mais voltou, muito menos, a botija de aguardente. De estômago revirado, a equipe fez o maldito carro pegar no tranco e partiu.