“South Park” talvez seja um dos maiores símbolos da sobrevivência do politicamente incorreto. Com um público fiel, uma linguagem acessível — embora bastante ácida — e um traço rústico inconfundível, o desenho norte-americano coleciona polêmicas desde a primeira temporada. Na mais recente dessas situações, a China resolveu banir a série, promovendo mais um acalorado debate na delicada seara dos limites do humor.
Produzido inicialmente em stop-motion, “South Park” conquistou amores e dissabores ao longo de sua jornada. Apesar de muitas vezes estar associada a agressões que parecem, em um primeiro momento, totalmente gratuitas, a série promove debates interessantes sobre os mais variados e controversos temas da atualidade, recebendo em contrapartida boicotes e críticas dos que a veem como absurda. Assuntos como o preconceito, a cientologia, o judaísmo, o neonazismo, o feminismo, o aborto e muitos outros são recorrentes em seus episódios.
Talvez justamente por não se preocupar com o impacto causado por sua acidez, o desenho alcança um nível de deboche pouco comum no trato com situações delicadas. A sátira caricatural muitas vezes se contrapõe às grandes hipocrisias sociais e leva o espectador a refletir sobre pontos inquietantes de uma realidade que, embora seja retratada na pequena cidade que dá nome ao seriado, está inserida no dia a dia de cada nicho comunitário no mundo todo. É difícil ser indiferente ao enredo, principalmente devido à forma inconsequente pela qual é dinamizada a crítica, cujos alvos principais são normalmente as celebridades mundiais, com suas vidas construídas sobre imagens.
Eis que, em seu episódio intitulado “Band in China”, a série resolve abordar a repressão do regime comunista do país asiático. Como consequência, o governo chinês decidiu banir “South Park” das buscas da internet e das plataformas de streaming. Como se não bastasse, em um episódio posterior, a série abordou a inclusão de mulheres trans nos esportes, recebendo inúmeras críticas e sendo apontada como transfóbica. Nada mais “South Park” que uma provocação sendo absorvida e repercutida.
Contudo, apesar de essa prática repressiva não ser nenhuma novidade, ela serve para reacender o inesgotável debate sobre os limites do humor. O mundo já observou uma tragédia decorrente de uma sátira: o atentado ao prédio do “Charlie Hebdo”, na França, que terminou com vários mortos. É o eterno embate entre a liberdade de expressão dos humoristas e uma questão de cunho filosófico: em nome do humor, toda piada, por mais ofensiva que seja, seria válida? Longe de esgotar o debate, é certo que os criadores de “South Park” desdenham de qualquer limite, combatendo as perseguições com respostas irônicas e muitas vezes criativas (no caso da China, utilizaram o Twitter para pedir desculpas, dizendo-se mais fãs do dinheiro que da liberdade e saudando o Partido Comunista chinês). Uma iconoclastia brilhante e questionadora.
Produto de um tempo em que os debates estão cada vez mais inflamados e menos racionais, “South Park” sobrevive e permanece cumprindo o seu papel de espicaçar a sociedade. O seu humor “escrachado”, muitas vezes mais profundo do que parece, contribui bastante para incutir nas pessoas uma conscientização indireta dos mais obscuros preconceitos que vivem em cada um de nós. Nesse sentido, ainda que deva haver repreensões nos excessos, controlar a arte por meio da censura não parece ser o meio mais adequado para se combater injustiças. Até porque, aos insatisfeitos, restam as eternas opções de não assistir, boicotar ou rebater com críticas. Afinal, a própria abertura de todo episódio traz o alerta: “South Park” é um desenho de mau gosto, que não deve ser assistido por ninguém. Censurar também já é demais.