Durante a Titanomaquia o deus grego artesão do fogo, Hefesto, construiu a Égide, um poderoso escudo mágico. Essa arma defensiva foi utilizada por Zeus na guerra contra os Titãs e era talhada com uma imagem assustadora, que causava medo nos adversários. E não é que agora, na era moderna, surge entre nós uma nova Égide, desta vez utilizada pelos acusados de racismo em geral? É o famoso “eu tenho um amigo negro”.
Infelizmente, parece não adiantar toda a campanha de conscientização sobre a importância de haver cotas ou medidas de inclusão. O racismo, definitivamente, está arraigado em nossa cultura: é estrutural. Basta ligar no noticiário para nos depararmos, entre uma notícia e outra, com algum ignorante, acusado de determinada vertente de preconceito, cuja defesa preliminar e primordial é apontar a amizade ou o parentesco que tem com um negro. O véu que separa a ingenuidade do racismo em potencial é muito difícil de ser enxergado.
Dados do Atlas da Violência 2019 apontam que os negros são as principais vítimas de homicídio. A população negra também é a que mais sofre com a desigualdade, e boa parte dela ainda hoje vive à margem das benfeitorias estruturais do Estado. Após séculos de escravidão e de uma inexistente transição para a cidadania, o negro sentiu na pele todas as grandes transformações do país, da época do pelourinho até os dias atuais, com as abordagens policiais sem motivo e as mortes sumárias. E é exatamente por isso que uma frase tão singela é, mais que uma tentativa de defesa risível, o triste e fiel retrato de uma sociedade essencialmente racista.
É necessário ter em mente que o fato de se ter um parente ou um amigo negro não é desculpa capaz de apagar injúrias raciais deliberadamente praticadas. Em último caso, é de se pensar que seres humanos não são bichos de estimação e que, ao projetar seu ato falho em outra vida negra, mais uma vez na história o agressor estará colocando um corpo preto como escudo para a proteção da pele branca. Já superamos a sociedade arcaica escravagista em leis há muito tempo, mas parecemos permanecer presos a ela na mente e nas atitudes.
Apegar-se a amizades ou a ascendentes negros para tentar diminuir a culpa em uma situação de preconceito apenas consolida toda a sistemática cruel do racismo. Já existe uma barreira (in)visível e histórica que dificulta a vida dos negros na sociedade, desde a concepção. Quando alguém diz uma infeliz frase como essa, ainda que com a maior das boas intenções — o que não parece crível —, está apenas evidenciando um cunho pessoal ainda mais racista. É como associar um jogador de futebol a um arrastão. Ou como dizer que há negros que cortam o seu cabelo. Ou ainda que “até” se consulta com um médico negro. É preciso entender, de uma vez por todas, que a cor de um negro próximo não é uma Égide contra o racismo. E, por mais incrível que possa parecer, esses brancos “amigos de negros” na verdade são apenas Titãs — e não Zeus.