O universo não conspira contra ninguém

O universo não conspira contra ninguém

Da cintura para cima, andava anestesiado para a vida. Do umbigo para baixo, apenas as ereções matinais, fisiológicas, cada vez mais esporádicas, desperdiçadas em estrondosas rajadas de mijo contra a louça branca do sanitário. Em algum momento, tinha perdido a capacidade de sentir prazer. Fez um esforço memorável, mas, não se lembrou da última vez que chorou. Choros de raiva não contavam. Assistia a uma curiosa reportagem na TV sobre a alta incidência de AVC (Acidente Vascular Cerebral), doença vascular grave, muitas vezes fatal, que acomete o sistema neurológico. O âncora do programa, que carregava mesmo um semblante triste e pesado como uma âncora de navio, explicava os sinais e sintomas da doença, tintim por tintim, fornecendo aos telespectadores dicas insuperáveis de como evitar o mal e como proceder frente a um caso suspeito. A vítima carecia ser levada com urgência até o hospital mais próximo, para receber cuidados imediatos de desentupimento dos vasos com solução de aguarrás, evitando as sequelas, a morte e as famigeradas piadas de humor negro.

Supunha gozar de uma saúde de ferro. Isso, talvez, explicasse a frieza. Fazia tempo, encontrava-se amortecido, desprovido de elã. Intuiu que, talvez, desapercebidamente, tivesse ele próprio sido acometido por uma espécie ardilosa de AVC. Quem sabe, sofrera uma minúscula trombose que danificou a região encefálica responsável pela empatia; uma necrose fatídica, calada, irreversível, que apodrecera um fragilíssimo seguimento do tecido neuronal, anulando para sempre a sensação de prazer. Irritado com tais reflexões, desligou o aparelho e foi se sentar na varanda do casebre cedido pela universidade, o qual dava para um quintal florido com plantas carregadas de frutos. Acendeu um Jeronimo’s. Pensava melhor quando estava fumando. Então, pensou. Era bom em se isolar e pensar. Quase não saía. Morava só. Não tinha se casado. Não teve filhos. Melhor não tê-los. Recebia o auxílio semanal de uma diligente e extrovertida diarista proveniente do Norte, que não deixava as plantas morrerem de sede, nem a casa ser dominada pelos ratos, baratas e outras pragas medonhas como a solidão.

O vigor das plantas, sinceramente, não o comovia. Muito menos, as borboletas multicoloridas e os passarinhos de bicos pontiagudos que pousavam nas plantas para sugar o néctar, beber o sumo dos frutos e cagar para as suas aflições existenciais. O canto da passarinhada ribombava num abissal silêncio interior. Possuía uma mente brilhante que durante anos o conduzia por uma carreira coroada de êxitos, atuando como professor titular numa das mais conceituadas faculdades de mecatrônica do mundo. Havia pilhas de livros técnicos por toda parte. Nada de um Neruda. Tornara-se um sujeito culto, de capacidade notória, reconhecida e elogiada pelos seus pares. Entretanto, era uma lástima em matéria de relacionamentos interpessoais. Não se dava com as pessoas. Sentia-se um perseguido, um injustiçado, uma vítima de conspiração do universo. Brigou com sua única irmã. Tinha rompido relações com os pais, sem justificativas plausíveis. Não compareceu ao enterro do velho. Ficou sabendo da sua morte por meio de um advogado que lhe trouxe papéis para assinar. Quando a mãe morreu, acompanhou de longe a descida do esquife na garganta da terra. Tinha medo de ser reconhecido, de ser flagrado num daqueles raros instantes de arrependimento e amargura.

Passava dos 50. Não dava para garantir que amasse a profissão de professor universitário. Não amava nada, nem ninguém, nem coisa alguma. Era forte, pragmático, realista e, com certeza, o mundo ao seu redor não reconhecia o seu real valor. Exercia o ofício de professor por obrigação social, pelo futuro da nação e para garantir o próprio sustento. Não se intuía triste. Não sabia ao certo qual sentimento sentir. Por um instante, por um tolo instante, cogitou matar-se e dar números finais a uma existência tão exitosa quanto vazia. Mas, não podia propiciar contentamento algum a terceiros. Não ele, o “Professor de Gelo”, conforme um dos alunos escreveu, às escondidas, na lousa da sala de aula.

Lembrou-se do episódio ultrajante e teve um mal-estar súbito, um estremecimento interior típico de descontentamento. Parecia evidente que a zona cerebral responsável pelo rancor continuava intacta, operante, funcionando perfeitamente bem como um motor de última geração cujo projeto tinha passado pelo crivo rigoroso da sua prancheta de docente universitário, um cátedra inteligentíssimo, muito capacitado, que tinha estudado, estudado, estudado bastante, por toda uma vida, até se tornar um completo analfabeto em termos afetivos.

Apagou o cigarro. Decidiu ir para a cama. Ganhava mais dormindo, ao invés de ficar pensando nesses tipos de bobagens.

Eberth Vêncio

É escritor e médico.